Senso Comum

SENSO COMUM

Tenho admiração pelas pessoas humildes que moram nas regiões mais abandonadas da zona rural, onde a seca transforma toda a beleza da paisagem em um deserto. O chão, esturricado pelo sol que queima as plantas e mata os animais deixa os viventes à mercê da sorte. E o sofrimento em dose dupla não consegue matar a fé e a esperança nessas pessoas. A angústia presente no coração do homem citadino não atinge na mesma dimensão o homem do campo. O contato diário com a natureza que lhe dá a sabedoria necessária para conviver com todo tipo de problema, dá-lhe também o alento para os dias difíceis. É nessa convivência harmônica entre homem e meio que encontra a resposta para tantos problemas. Aprendeu, desde cedo, a fazer a leitura de tudo que o cerca. Perscruta os sons da floresta, observa a lua e as estrelas e também a direção dos ventos. Nessa sábia observação que não aprendeu nos livros, nem nas escolas, esconde-se toda a sabedoria desse homem. Ele sofre, porque não sofrer seria prova de insensibilidade, de dureza de coração. Seu sofrimento, porém, não é um sofrimento antecipado, lamuriante, que cansa, que enfadonha a quem ouve. Há no rosto crestado pelo sol, nas rugas precoces um olhar envolto em expectativa de dias melhores.

Foi assim que conheci Celina e foi isso que vi no seu rosto. Conhecia o problema da seca devastadora na sua região, mas não sofria por antecipação, não se desesperava. Procurava num sinal da natureza e na sua fé em Deus, a vinda da chuva que se ausentara há muito tempo.

Celina é dessas mulheres fortes, guerreiras, que não se entregam. Sempre me encontro com ela. Na rua, quando vem resolver qualquer problema na cidade; na minha casa, quando aparece para me visitar. Com o sorriso de sempre, me dá notícias da sua família, do seu lugar, me fala da sua vida. Jamais a vi abatida. Não se acabrunha com a situação difícil em que vive com o marido e filhos. A sua roça, mesmo ameaçada pela seca que castiga a região, não lhe tira o prazer de viver, nem a confiança em dias melhores. Celina é feliz daquele jeito. A alegria de estar com os filhos sadios, ter um companheiro fiel a seu lado e muitos amigos não a deixam fraquejar. Isso ela me disse por ocasião de nossas conversas.

Certo dia, ao tomar café comigo, na cozinha de minha casa, ela me disse:

-Perdi meu emprego, mas a fé em Deus me dá o sustento que preciso.

Eu quis entender que a fé de Celina em Deus, lhe dava a força de que precisava para ir à luta, não se acomodar.

Celina era merendeira de uma escola da sua região. Responsável, dedicada, cuidadosa e caprichosa, foi escolhida pela comunidade para fazer a merenda e zelar pela escolinha rural, com vinte alunos matriculados, que adoravam saborear a merenda que ela fazia. Perdeu o emprego. Mas perdeu o emprego, por quê? Foi a minha pergunta imediata. Ela só sabia que chegara outra para ocupar o seu lugar. Nenhuma explicação recebera de quem, por dever, devia dar. Valeu a pena? Quem sabe valeu para Celina que deixou saudade na gurizada. Valeu a pena para o político que a dispensou e que dissera às crianças e aos pais que eles não mandavam ali? Que agora a coisa era diferente e quem decidia era ele? Atos arbitrários assim voltaram a ser praticados nesta cidade, onde o autoritarismo permeia todos os órgãos públicos. Procedimentos como esses machucam as pessoas e deixam marcas porque ferem a sua sensibilidade.

O fato é que Celina não se abate. A mesma calma, o mesmo sorriso, a mesma fidelidade. E, diante da seca implacável, sem ter mesmo água para beber, ela confiava. Não nos homens que a ignoraram, mas em Deus e nos amigos. E ela era uma pessoa de muitos amigos.

Numa simplicidade que lhe era peculiar, disse-me ainda nesse dia:

-Quando a jurema preta “fulorar” e nóis ouvir o ronco do motor, daí três dias chove.

Fiquei sem entender e lhe perguntei:

-Celina, isso é verdade? Que motor é esse?

E ela confiante, respondeu:

-Não sei que motor é esse não. Mas é daqui de Brumado. Deve ser o vento que leva o ronco até nóis.

Passados alguns dias, Celina volta a minha casa. Era dia de quarta-feira. Chovera toda a noite e continuava chovendo. Como de costume, convidei-a para tomar café. O mesmo sorriso, a mesma confiança na vida, a mesma fé em Deus. Então, lhe fiz a pergunta?

-E aí, Celina, choveu por lá?

Celina, com um gesto de confirmação, falou a seguir:

-A jurema preta fulorou e o ronco do motor chegou pra nóis ouvir. Daí três dias choveu. Deus é grandioso!

Quanta sabedoria essa gente simples tem para nos ensinar! O conhecimento da natureza, das transformações por que passam as plantas, os animais e os elementos cósmicos fazem dessas pessoas criaturas sábias.

A sabedoria de Celina, portanto, reside no saber viver em harmonia com a natureza, saber sofrer e sentir a dor no tempo certo, sem antecipação e lamúrias, mas acreditando que tudo tem um fim. A vida é um acontecer de fatos, mas a sabedoria do silêncio nos leva à contemplação e, conseqüentemente, à compreensão dos acontecimentos, mesmo os mais difíceis para suportar.

Cecília Meirelles disse: “Sede assim qualquer coisa, serena, isenta, fiel. Não como os demais homens”.

Com essas elucubrações sobre a vida, percebi que Celina encontra, como disse Augusto Cury, um oásis em um deserto e nunca vê, como os perdedores os raios, mas a chuva para cultivar.

Na crítica a esse senso comum é que os cientistas constroem o conhecimento científico, questionando, reformulando esse saber para se chegar ao saber científico.