Quando eu ficar velha
-Corta esse cabelo, menino! Tá cabeludôn!
Minha avó não tinha papas na língua. Recebia os netos rebeldes, década de 70, com reprimendas ao tamanho dos cabelos e das barbas. Naquela casa grande porém muito simples da fazenda, no meio do cafezal, ela reinava absoluta e ainda fazia crer que era meu avô quem comandava tudo. Como era possível, se meu avô saía na madrugada ainda escura e voltava apenas ao por do sol, para administrar a cavalo aquele irreal mundo verde?
Na verdade era ela a mandante: ajeitava tudo com todos, punha todo mundo para trabalhar. Na roça, toda ajuda é bem vinda. Nos finais de ano, botava meu pai, a contragosto, para ajudar a matar o porco; mandava os netos catar o feijão, pegar os temperos da horta, trazer a lenha para dentro. As mulheres cuidavam da cozinha e ela se encarregava pessoalmente do sacrifício das galinhas. Todos envolvidos no preparo do almoço de Natal, para que meu avô, radiante à cabeceira da grande mesa cheia de filhos, filhas, genros, noras, netos e netas, pudesse se orgulhar de sua prole da cidade. Meu avô de cabelo muito branco, pele muito rosada e olhos muito azuis, a mirar sorrindo o untuoso prato de sopa de cappelletti.
Minha avó, mancando de uma perna e cujos cabelos muito longos e negros só eram vistos fora de seu coque à noite, era uma mulher ativa e sábia. Distribuía conselhos certeiros, tinha insights fantásticos. Graças à sua vivência ou sua intuição aguçada, era de fato uma figura imponente. Parteira, rezadeira de quebranto e cobreiro, aquela senhora de ascendência e sotaque italianos, com seu colo macio e farto, era respeitada na colônia. Dona Ínes, como o povo dizia, sentava-se à varanda da casa da fazenda e ria seu riso simpático depois dos afazeres, no final da tarde, como quem realmente estava de bem com a vida. Nem o derrame, que parcialmente prejudicou sua visão, a impediu de ver tudo sempre com olhos de boa vontade e de esperança.
“Quando eu ficar velha” era o seu bordão. Não se via, e nem a seus filhos já com netos, como pessoas idosas. Essa juventude de espírito se manifestava em todos os setores de sua vida. Nunca gostou de tecidos escuros: seus vestidos eram sempre de florzinhas miúdas, de preferência coloridas e em cores claras. Quando ganhava um corte mais sóbrio, dizia:
- Credo, isso é roupa de velha.
Minha avó nos deixou as 96 anos, em plena juventude.
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Este texto faz parte do exercício criativo "Dia dos Avós".
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