Com o pé na estrada (Nas águas do Gongogi) - Viagem a Terra do Nunca
A primeira tentativa de deixar a minha casa aconteceu quando eu tinha uns onze anos de idade, motivado pelo inconformismo diante das constantes agressões verbais de meu avô materno, Raimundo Curvelo. Ele, o meu avô, era um especialista em xingamentos, notadamente quando se esbaldava com os termos “Cabrunco” e “Fi da Peste”, os seus prediletos. Um dia, pela manhã, juntei algumas roupas numa trouxinha de pano, coloquei em minhas costas, pendurando a trouxinha num cabo de vassoura quebrado, como já havia visto em alguns gibis que costumava ler e peguei a estrada que conduzia a Itabuna, cidade localizada a 63 quilômetros de Gongogi, onde morávamos, na região Sul do estado da Bahia.
A sensação de liberdade que senti, caminhando na companhia de meus pensamentos pela estrada ornada de cacaueiros e perfumada pelo cheiro das jacas e cajás foi de uma paz indescritível. Prá colocar a cereja que faltava em meu bolo de festa, me vinha a doce consciência de que estava me afastando cada vez mais da odiosa voz de meu avô, que os seus xingamentos e imprecações haviam ficado para trás definitivamente, cada vez mais despegados de mim a cada passo que me levava para diante.
A sede não representava problema, já que havia fartos regatos em toda a área, nem mesmo a fome era fonte de preocupação, pois que, quando esta apertava, eu me alimentava dos frutos do cacaueiro e das várias outras espécies, como as goiabas, mexericas e cana-mirim. Seguia feliz, mergulhado nos sonhos de um menino de onze anos, que finalmente se sentia livre para voar, não me importando nem um pouco aonde seria o meu próximo pouso. Qualquer coisa, para mim, seria melhor do que a insuportável companhia de meu avô, pois compartilhar do mesmo teto que ele não fazia parte de meus planos.
Até então meu avó havia enfiado goela abaixo os desaforos dele, funcionando como uma espécie de compensação dos carinhos que me vinha de minha avó, e pela precoce conscientização de minha fragilidade no tocante à minha própria sustentação econômica. Porém, no dia anterior a minha partida, o meu copo de fel atingiu a borda ao ouvir uma saraivada de xingamentos enquanto eu almoçava. Larguei da comida e fui para o meu quarto, mantendo-me lá até a manhã seguinte, quando iniciei a minha jornada em busca de ar mais puro para respirar.
O meu primeiro sonho de liberdade acabou com a visão de minha avó descendo do ônibus e parando a minha frente, com as duas mãos postas a cintura, olhando-me com um olhar interrogativo. Uma enorme nuvem vermelha de vergonha cobriu toda a minha face, não por estar fugindo de casa, e sim por ver obstados os meus primeiros projetos de independência.
Com a minha volta para casa estabeleceu-se, após a frustrada tentativa de evasão, uma provisória trégua entre o meu avô e eu, diminuindo a carga de impropérios que ele me dirigia cotidianamente. Este armistício durou em torno de quatro anos, tempo em que procurei também me aproximar mais dele, ajudando-o nas tarefas em sua pequena fábrica de sapatos e no curtume que ele mantinha próximo ao matadouro, em Gongogi.
Na sapataria eu cuidava de pequenos consertos, auxiliando também nas vendas dos produtos que lá estavam; eu gostava de ver a habilidade de meu avô, ao engendrar modelos novos de calçados, manejando com perícia as afiadas facas de corte. Eu mais brincava e conversava com os oficiais sapateiros do que trabalhava, escutando suas muitas histórias. Eles tinham apelidos sonoros, que me soavam muito engraçados: Bobó, um cafuzo desengonçado e brincalhão, sempre às voltas com a cachaça e as doenças venéreas adquiridas na zona boêmia local, e Bombacho, que, como o próprio apodo sugeria, era um tampinha, desses bem enxeridos.
Meu avô, que gostava muito do Bombacho, tentava levá-lo para nos acompanhar durante as refeições em nossa casa, esbarrando sempre nas recusas de minha avó, que invariavelmente dizia: “Não tem almoço nem prá Bombacho, nem prá Bom-alto, oras."
"Se você quiser que o leve para onde bem entender. Aqui é que não será”.
A mesma sentença restritiva não valia para o desengonçado Bobó, sabedor este dos caminhos de como agradar a Dona Maria Pequena, e por isso sempre tendo trânsito livre em nossa casa e em nossa mesa também.
E os dias se sucediam modorrentos na Gongogi de minha adolescência...