Fragmentos de julho - O mar

IV- O Mar

Ainda me lembro como se fosse há pouco, ainda me lembro como se fosse quase agora. Ainda posso sentir o gosto amargo do sal se desmanchando na minha boca, ouço nitidamente a rebentação das ondas na praia e os murmúrios lamentosos do mar na escuridão. Eu caminhava longamente pela praia noturna e seguia atento o luminoso contorno deixado pelas espumas na areia; eu não tinha um nome, não tinha passado nem um futuro, eu era apenas um homenzinho bêbado diante do mar... Era mais: eu era seu mais novo filho! O mar me adotara e me ensinava a andar, eu que não sabia... Dizia-me pacientemente que não se devia caminhar em linha reta, a vida com seu mistério sempre exigirá novas rotas, imprevistos, então eu cambaleava e oscilava de um lado para outro acompanhando seu ritmo, traçando com meus passos seus contornos imprevisíveis, e logo notei que não caminhava, compreendi, de repente, que dançava; eu estava embriagado e dançava alegre na beira do mar, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. Eu era com orgulho o seu mais novo filho, sorria, eufórico, pleno: então eu voltei meus olhos pro infinito e bendisse o mar, que me acolhera nos seus longos braços e me ensinara a caminhar.

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Eu lembro, eram dois meninos e uma menina. Foi em João Pessoa, na praia do Cabo Branco. Os três corriam eufóricos, as mãos dadas, corriam alegres em direção ao mar. Cuidei que eles não me notassem, não queria lhes estragar a festa; pareciam tão puros, tão jovens, a vida a plenos pulmões! Sim, eles festejavam; tinham as calças dobradas a altura da canela e chutavam as espumas, catavam conchas e seixos pelos caminhos. Depois, que estranho ritual! Passaram a riscar com o dedo a areia da praia: gravavam palavras, pequenos sinais humanos; escreviam na areia e ficavam esperando as ondas apagarem tudo, palavra por palavra... Parecia que eles procuravam naqueles rituais as formas mais primitivas de comunicação com o mar – uma delas - assinalava Rubem Braga: é ter uma pedra na mão e lança-la nas ondas. Então eles lançaram pedras nas ondas. E por fim esses meninos se cansaram e se sentaram ofegantes, plenos, exaustos e enluarados, conversando coisas na beira do mar, contando coisas meigas e vadias, coisas amenas e pequeninas da terra, coisas que se perderam pra sempre, como aquela sandália de Karina ou as coisas que o Thubin dizia... Coisas pequeninas que se perderam pra sempre entre as ondas e os murmúrios noturnos do mar infinito.

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Eu levava minhas tristes cinzas numa velha urna imaginária enquanto passeava pela praia de Tambaú, bela praia dos pescadores, de gente humilde e silenciosa – pensei haver ali, naquela velha urna, todos os despojos imundos que acumulara durante todos esses anos longe do mar; minhas fobias, meu surdo desespero, o gosto amargo da angústia e do tédio destilados na alma, tudo haveria de ser despejado naquelas ondas que rebentavam diante dos meus olhos cansados.

Então eu fechei bem os meus olhos, respirei o vento gelado que chegava sobre as ondas e me lembrei de Fernanda com ternura. Ela que estava distante, ela que nunca vira o mar. Quando Fernanda falava seus olhos tornavam-se vivos, enérgicos; dizia que a gente finge que é por escolha que seguimos em frente e, dessa maneira, mentimos pra nós mesmos. Isso, pra sua alma límpida, é como não estar funcionando, é como se alguma coisa estivesse errada, alguma coisa que devesse mudar. E foi pensando em Fernanda e em suas palavras que segui em direção a uma praia de ondas ainda calmas e maré baixa.

Ah, saudosas águas dos pescadores paraibanos, águas de Tambaú, receba estas pobres cinzas deste teu filho distante, levai-as embora, devora-as com tua grandeza abissal, esmagai minhas pequenas misérias, meu mundo de mentiras, levai consigo, levai pra bem longe, guardai todas no teu seio profundo...

... E me faça definitivamente teu filho. Ah, quisera-me cravado aqui entre os teus pescadores, quisera-me saber pequenino, ser humilde e paciente como são os teus verdadeiros filhos, não mais esse nervosismo nos semáforos, não mais esse surdo desespero no quarto vazio, não mais esse remoer de pensamentos confusos a hora do café, essa falsa promessa de felicidade que nunca vem, os homens e sua vaidade, e sua displicência brutal, suas mentiras, a cidade seus afazeres e seus remédios e suas vícios e seus prazeres medíocres que não me saciavam a sede, que não me atenuavam a febre, que me perturbavam a alma.

Então resplandecera sobre as águas um sol luminoso e o grande mar cuidara de lançar suas ondas sobre meu corpo, em golpes generosos, me envolvendo harmoniosamente nos seus braços.

"Agora calma, meu filho... Tudo vai passar. Uma nova manhã já rompe sobre meu dorso infinito, vês! Vês como tudo se banha em ouro sobre as águas! Sinta a brisa quente que te sopro sobre os cabelos, ouça as estórias que presenciei ao longo dos séculos, não são ventos, são estórias bonitas, algumas trágicas, outras fantásticas, são estórias de pescadores, de marinheiros e piratas, são contos de sereias e monstros marinhos; saberás tu estórias de Tambaú, de Jaguaribe, de Guarapari e de todas as praias que teus sonhos alcançam, praias que os mapas desconhecem, que os homens ignoram. Escuta-me: tu catarás conchinhas para os que te esperam; uma concha para cada amigo, para cada doce mulher que cruzar teus tortuosos caminhos; tu voltarás para teu mundo e comungarás fogo, pão e abrigo entre os teus, os meus sopros e murmúrios hão de levar pra bem longe teus pensamentos confusos e tu serás leve, puro e calmo entre os homens; e tu ensinarás embora com poucas palavras as coisas que te ensino. Mas antes de regressar para os teus, senta-te aqui meu filho, senta-te aqui, ouça as estórias que tenho pra te contar, senta aqui meu filho; vem, que eu te faço um longo carinho nos cabelos e te ensino o tranqüilo sono das pedras..."

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 23/07/2010
Reeditado em 23/08/2011
Código do texto: T2394842
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