Fragmentos de julho - O tempo e a estrada

II – O tempo

E então eu me lembrei do jovem idealista dos meus 18 anos de idade em face do homem de 24 anos. Entre um e outro são seis anos. Seis anos... O que são seis anos na vida de um homem? Com seis anos de vida uma criança já está falando fluentemente sua língua materna, já caminha, corre, tropeça, rala os joelhos, amarra os próprios cadarços, anda de bicicleta, se reconhece no espelho, aprende os primeiros palavrões e já leva gravada na alma um monte de traumas e fobias de que talvez jamais se livrará; pouco ou quase nada faz lembrar nessa criança aquele bebê que nascera há seis anos, careca e desdentado, aos berros. Tudo é lapidado vertiginosamente pelo tempo e aquelas enormes pedras paradas na beira do mar se movem no tempo e amanhã assumirão outros contornos, e a força do hábito diz pra gente que daqui a cem, duzentos, trezentos, mil anos, todas essas pedras serão irreconhecíveis. E é com assombro que constato o enorme abismo que separa o jovem idealista de meus 18 anos e o homem desorientado dos meus 24, confuso homem aquele de julho de 2010!

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Eu já não era o militante socialista de 18 anos, aquele que acreditava fervorosamente na Revolução como quem acredita na volta do Messias Salvador; não, já não cultivava tantas certezas assim. Meus mitos proletários, Lênin, Trotsky, Guevara, já haviam desabado como pesadas estátuas sobre meus pés, provando-me mais uma vez que tudo o que é sólido sempre se desmancha no ar. Mas o estrondo de tudo que desabara ainda ecoava vagamente no meu coração arrasado e deixava entre seus escombros uma esperança pequenina, tênue, precária, quase imperceptível.

Naqueles dias de morno desespero eu procurava nos meus poetas o consolo necessário pra continuar caminhando. Era como se lessem, eles, as linhas de minha alma confusa; penosamente eles iam fazendo-a mais clara, davam palavras ao meu pertubado silêncio. Manuel Bandeira e Rubem Braga me compreendiam como ninguém e Carlos Drummond em seus poemas me anunciava o nascimento de uma flor. Ela romperia o asfalto em plena capital do país, e embora feia, era uma flor. Ela romperia o asfalto, o nojo, o ódio e a total incompreensão. Era preciso portanto estender minhas mãos para os homens, caminhar por entre eles, oferecer fogo e abrigo. Era preciso sempre se reerguer, não desistir de acreditar, bradava-me uma voz dentro de mim, me convocando pra luta, vamos, levante, Quixote! Eu me lembro bem, era mesmo isso: eu era um Dom Quixote destroçado tentando se recompor das feridas da terrível queda...

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III – A estrada

Até parecia mais ou menos fácil prever um rumo para aquele rapaz de meus 24 anos. Os rumos pareciam razoavelmente sólidos. Cursava o 7º semestre de Letras na Universidade de Brasília e trampava monitorias em cursinhos pré-vestibulares por micharias que mal sustentavam seu curso e seus vícios; até ali tudo indicava que seria professor. Meus pais, por outro lado, pressionavam: me queriam funcionário público, com todas as promessas e vantagens de uma vida estável: bem remunerado, encaminhado. Mas marchando contra a corrente dessas expectativas eu me permitia à evasão dos sonhos mais disparatados. Eu ansiava pelo incerto, pelo improvável, pelo quixotesco; eu me sonhava ao lado de Karina e Dunguinha pegando carona num caminhão no meio da estrada.

Eu ansiava pelo bafo quente das rodovias, eu teria um olho fixo no horizonte e outro no retrovisor. Estaria sempre a partir, a vida seria uma incessante descoberta; outros povos, outros costumes, outras estórias, Minas, Espírito Santo, Bahia se desdobrando sobre meus olhos ávidos de mundo. Era urgente a necessidade de conhecer a si mesmo, de romper fronteiras, de abandonar os velhos hábitos, era necessário dar a si mesmo a oportunidade de provar a própria força, saber meu exato tamanho no mundo, pra isso devia enxergá-lo a olho nu, era preciso liberta-lo do mapa-múndi, das pesadas e monótonas enciclopédias. Eu percebia que mais coisas poderia me ensinar o mundo do que todos os livros que se escreveram sobre ele!

Nas costas não mais a cruz das obrigações acadêmicas, mas uma mochila, nela haveria apenas o essencial, aquilo que um homem precisa para sobreviver, os cinco ás: ar, água, alimento, abrigo e amor... De resto a liberdade esplêndida das estradas, a aventura quixotesca sobre um cavalo ligeiro ou num trem mineiro, num ônibus, numa motocicleta ou na boléia de um caminhão, não importava como e com que, importante era a travessia, ser tudo que se podia ser na estrada!

Era preciso portanto descobrir a América, penetrar seus vales, seus desertos, seus rios! Era preciso viajar de Belo Horizonte à Vitória nos alegres vagões de um trem, ouvir Milton Nascimento, Lô Borges, o Clube da Esquina e cantá-los bem alto. Era preciso jogar o corpo no mundo, ouvir os Novos Baianos, o Mistério do Planeta, e compreender a fundo a lei natural dos encontros; era preciso levar o Dunguinha pra conhecer o mar, ele que nunca vira o mar; era preciso correr o risco de se perder para poder se encontrar, era preciso ver como um danado, era preciso partir, pois sempre haveria a promessa de um encontro marcado com nós mesmos no outro lado do horizonte!

Mas logo a vida com seus moinhos de vento tratavam de nos derrubar do alto de nossos sonhos e rolávamos aos trambolhões ladeira à baixo, e regressávamos destroçados e miseráveis ao nosso admirável mundo-cão, sacolejando vazios em nossos ônibus públicos, engolindo humilhações, gritos, sirenes, amargando tarifas absurdas, longas jornadas de trabalho e bebendo nas sextas-feiras nossa triste evasão nas mesa de bares suburbanos.

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 23/07/2010
Reeditado em 23/08/2011
Código do texto: T2394836
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