Fragmentos de julho - O cerrado
I - O cerrado
Ainda me lembro como se fosse há pouco, ainda me lembro como se fosse quase agora. O sol batia sobre os telhados e seus raios se derramavam verticalmente sobre os quintais do meu bairro e o céu, o céu de Brasília resplandecia azul sobre as árvores do cerrado naquele julho de 2010. Os ipês e as paineiras davam à paisagem um tom lilás e nada na natureza nos levava a dizer que havia tristeza nas coisas; a natureza em alguns recantos do cerrado sorria alegre, e enxergar isso era possível para quem acompanhasse de perto a evolução das estações em Brasília.
Mas eu acabara de trancar um semestre tumultuado na universidade e contemplava naqueles dias alegres o desespero de uma liberdade quase obscena. Viver nunca fora tão perigoso como naquele mês de julho. Eu sentia o peso da insustentável leveza sobre minhas costas e tinha o coração dotado de incertezas. Talvez tenha sido isso: tanto falei em leveza que me tornei pesado.
Já não era tão jovem assim. Tinha 24 anos e diferente do jovem idealista dos meus 18 anos já não sabia ao certo o que queria de mim e do mundo. Que fazer dali pra frente? Não fora convocado pra nenhuma grande guerra, não era correspondente de nenhum jornal influente, não estava entre os tripulantes da expedição de Pedro Álvares Cabral, não era nenhum dos amantes de Cleópatra nem me chamava Napoleão Bonaparte. Eu me sentia às vezes um Mersault, o estrangeiro do romance de Albert Camus; não tinha nenhuma grande verdade, nenhuma religião, nenhum mito, nada que justificasse minha existência sobre o mundo, eu me sabia livre com um imenso horizonte escancarado a minha frente e isso, saber isso, ao mesmo tempo que me excitava, era insuportável, me amedrontava.
Não foi mesmo Sartre quem disse que estamos, os homens, condenados à liberdade? A consciência dessa liberdade só a tem quem escapa às verdades absolutas, saber a todo momento que somos responsáveis e criadores de nosso próprio destino e que tudo são o resultado de escolhas, trás consigo uma responsabilidade na esmagadora maioria das vezes insuportável. Eu contemplava a liberdade e tinha medo.
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Precisamos preservar os ipês, murmurou então uma voz dentro de mim. Essa voz seria a voz de minha consciência, de minha alma, de onde vinha? Preservar o ipê seria preservar a humanidade no que ela tem de mais frágil e perene. Eu não sabia qual o sentido da vida e por mais que o procurasse não conseguia lhe achar um significado, sabia unicamente que a vida era bela, e sofria por isso. Eis a única constatação, simples e patética: a vida é bela... Essa faculdade de perceber e sentir o mundo na sua beleza essencial é algo inviolável e ao mesmo tempo um fardo pesado, rumoroso fardo de poeta...
Então nas flores de ipê minha alma de repente se espanta e se descobre!
Aquelas flores de ipê me faziam lembrar que dentro de mim havia uma alma e que essa alma precisava da beleza assim como precisam os homens do pão e do fogo de outros corpos. Só ficava feliz por saber que o ipê não precisava de mim para ser lilás ou amarelo. Eu era uma espécie de bobo, desses que nada sabia. Eu olhava a natureza e não a compreendia, não lhe descobria seu mistério íntimo, e sofria com os homens essa angústia de não saber, e ora com os mesmos homens cantava sua esplêndida beleza, mesmo não a compreendendo em nada.
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