Sofrimento
Concebemos a vida como uma profusão de orgasmos e dores de dente. Ela parece ser mais ou menos isso. Mas uma coisa não tem jeito: a vida social humana está calcada por dois pilares que são a palavra e a imagem.
Sou um palavreador que fuça na terra preta as minhocas que me servirão como isca para fisgar o peixe-felicidade. O colorido peixe que adornará a minha dor e nutrirá minha alma e encherá meu bucho com palavras. Estas são alimento meu. Palavra que frutifica. Palavra madura. Palavra em estado de putrefação. Palavras são coisas fortes e duras que só nós, homo-sapiens, temos de enfrentar todo santo dia. O peso que elas tem. A dureza que elas tem; sua rigidez. O animal não tem nada disso – demonstração de superioridade talvez. São eles tão inteligentes que não necessitam desta muleta que é a palavra, para poder se comunicar harmonicamente. E se não harmonicamente, pragmaticamente. Até a dor deles deve doer muito menos, pois seria uma dor codificada – de um tipo de código ininteligido. Isso torna a dor animal apenas dor e nada além disso. Ao passo que nossa dor humana ecoa sem parar, transformando-se cruelmente em letras reverberantes. E em imagens – que são rapidamente transformadas em palavras. E vice-versa.
É engraçado como somos todos atores. Palavreadores. Palavreadores buscando o paraíso. Muitas vezes é necessário descer ao coração do inferno para encontrar um pequeno, mínimo fragmento, um lapso deste paraíso perdido. Uma lasca de paraíso que chamamos de felicidade – se o niilismo predominasse em nossa cultura irreversível de busca de felicidade, esta palavra – felicidade – nem existiria. O cristianismo, que apregoa a negação do prazer, é inevitável para todos nós. E traz benefícios concretos à humanidade, apesar de obrigar-nos a crer em um Deus que esconde o rosto e se mostra ausente diante de um estado mundial de coisas onde há fome e miséria incessante – o que atrapalha, e em muito, a crença de que haja alguém superior e justo a controlar tudo. Mas, ainda assim, ser cristão pode significar ter paciência e tolerância. Nisto, o cristianismo é lindo: paciência e tolerância são ingredientes de amor e ajudam a ver o belo. Assim como o cristianismo, o budismo também é lindo. Mas eles têm mesmo esta face niilista, como já dizia Nietzsche. O niilismo é anti-humano. Aceitar a tudo o que é dor, é o mesmo que render-se ao nada. Somente os animais podem viver de forma niilista. A felicidade que sentimos quando nos tornamos, por pequenos instantes, animais, é insuportável se prolongada – torna-se infelicidade.
Mas me deixe tentar ficar puro por alguns instantes. Deixe-me sentir o céu vermelho como se fosse meu sangue, e a terra vermelha como se fosse minha carne. Mas tudo isso sem poesia literal. Falo de sensações mesmo. Porém, tais sensações devem, de fato, ser passageiras. Caso contrário eu não conseguirei ser senhor do meu destino. Eu sou homem e tenho que me pertencer – estou condenado à liberdade de Sartre. Não posso pertencer ao sol, à terra ou às árvores. Assim como não posso ser senhor deles, não posso a eles pertencer. Sou homem, e traço, na medida do possível – e não muito me é possível, tendo visto a intrincada teia social de destinos cruzados e interdependências humanas – meu caminho. Os espinhos dessa quase-vida social vão danando meus pés. As imagens "via-sacrélites" da TV vão lacrimando minha face. Uno minha cruz à de cada um dos meus companheiros de jornada, carregadores e fazedores de cruzes, e sigo avante, comendo as flores ao final de cada caminho. E como é bom estar vivo e sofrendo. Como é linda esta vida; este negócio parecido com um grande teatro – não de marionetes, espero.
Primeiro o homem usou a unha. Depois o pau; depois a pedra lascada, a polida, o fogo, a roda, a cerca, o couro, a matemática, o carvão, o papiro, o tear, a arco e flecha, o escudo, a armadura, a lâmina, o brasão, a bandeira, o papel – muito bom este. Depois a pólvora, o canhão – este não. Sinfonia, fotografia, cinema, automóvel, avião, helicóptero, foguete, plástico, televisão, bomba atômica, (...) e tudo o mais que nem sabemos, talvez não exatamente nesta ordem. Estou bem com tudo isso. Acho que não estaria feliz se tivesse que usar ainda a unha. Gosto da luz elétrica. Gosto do liquidificador. Gosto de televisão. Avião eu ainda não usei. Mas o que dói é ver neguinho ainda passando fome e usando a unha para pegar as bolsas das madames. Dói ver o que a civilização cristã tem feito com o que os homens do bem – cientistas e inventores de todos os tempos – criaram para nosso conforto. E a forma como a maioria dos governantes – homens do mal – tem distribuído essas conquistas da humanidade. A rigor, eles não conseguem distribuir. É claro, também, que quem inventou a pólvora não deveria estar bem intencionado. Assim como sei que existem e existiram líderes populares e até ditadores bem intencionados. Este é o baile encantado do Todo Mundo Tem Razão. Quem busca a paz por meio da guerra tem suas razões para pensar assim. Quem usa atitudes pacíficas como forma de ocultar covardia, violência ou encobrir verdades "perigosas" também tem seus motivos. Bretch pede para nunca dizermos que isso tudo é natural: obviamente ele tem muita razão. Eu penso que acertaremos com os nossos erros, como qualquer alfaiate estraga a fazenda ao tentar fazer os seus primeiros ternos. Estamos começando, não é?
Um começo é sempre um começo. Como um começo de namoro. Momento feito de fantasia e aprendizado. Nada no mundo se compara ao estado de fantasia e aprendizado dos amantes apaixonados. A poesia parece encarnar-se em tais momentos, a ponto de transpor o poder da bomba atômica.
Estive pensando em você – vou tentar deixar claro o que significa você – isso se não deixar bem escuro, pois o meu "você" é um monte de pessoas e coisas: não é você esposa amada, nem você amor antigo, nem você paixão nova, nem você paixão platônica, nem você mulher bonita que surge de repente, nem você Deus, nada disso; ou tudo isso, ou ainda uma coisa a cada vez que eu diga "você"(portanto, ao longo destes escritos que pretendo tecer, a palavra você se transmutará). Pensei em você e eu – ou melhor, só você – sob uma lua de porcelana numa praia de Pensacola. Palmeiras emoldurando o musical paraíso onde te movimentas e danças a tua dança de cinema antigo. Os ventos contando histórias das galáxias aos teus ouvidos. Histórias que quererei saber para que eu possa reprisá-las ao violão capenga de cantador eternamente apaixonado, capaz de chorar com os mais simples acordes. Viajas e volta para cá com teus olhos vermelhos de acordar e dormir, e de dormir e acordar. Acorda com meus acordes. E, façamos um acordo: vamos trepar. Trepar na árvore da ciência que devora os homens, para que saibamos tudo como os animais o sabem. Gozemos o orgasmo eterno no intervalo de cada dor de dente.
Meu objetivo é gozar. Mas meu poeta chora por coisas. Ele chora por muitos. Chora por você. Chora por minha teia de pressuposições totalmente incompletas. Seria fácil para nós (dois) encontrarmos a felicidade não fossem as misérias que nos cercam e humilham, com peso abismal, a nossa suposta escassez. É bem mais fácil gozar – e nem tão fácil assim – com os olhos fechados para as desgraças do mundo. Seria uma atitude egoísta dizermos: "não fomos nós que desgraçamos o mundo". Mas, por outro lado, seria justo forçarmos a barra e dizermos desfaçativamente: "não somos egoístas"?
O ser humano tem esse peso sobre si: a culpa. E, paradoxalmente, a culpa foi a melhor coisa que aconteceu em nossa cultura – ela nos humanizou. Na National Geografic você pode ver como um elefante velho é abandonado pela manada, ou como um leão come seu filhote para que a leoa, deixando de amamentar, volte ao cio rapidamente. E eles não se sentem culpados. Por situações como estas não poderei ficar glorificando e enaltecendo a perfeição do reino animal e subestimando a organização do humano. É mais difícil ser homem que bicho; pois sofremos conscientemente. Sofremos até com a fome dos outros – ainda que nem tanto quanto demonstramos sofrer, embora choremos e tudo o mais. O amor necessita de treino, e no teatro da vida real, cada um de nós, atores, ensaia o amor. E ainda que esqueçamos o texto constantemente, este, uma vez decorado, passa a ficar ali, no nosso íntimo, linha por linha, parágrafo por parágrafo, incólume. Isso torna fácil a prática da caridade, seja por meios físicos ou psicológicos. Penso que, mais cedo ou mais tarde, essa prática há de dissimular-se igual a qualquer outra cultura. Nesse dia, nós dois poderemos gozar com a consciência mais tranqüila, e poder cheirar as flores e comer as amoras, pois saberemos que ninguém por perto está fedendo e faminto. E, engraçado, penso que a vinda desse dia está em nossas mãos. É nossa a corda do relógio.
Por enquanto, a caridade mais verdadeira – é, existem coisas mais e menos verdadeiras – que há, nem se chama caridade; chama-se troca. E a mais linda troca a qual posso presenciar é a troca entre amantes. Quando um homem e uma mulher se amam – com a ressalva de toda a ambigüidade carregada pela palavra amor – o mundo se transforma em um lugar melhor. Quão bom seria se todos os homens e mulheres deste planeta pudessem experimentar uma grande experiência amorosa, ou seja, de troca irrestrita. Ao ler as sujas, porém lindas, cartas eróticas que James Joyce escreveu à sua amada Nora Barnacle, fiquei pensando muito sobre aquela entrega de um casal do início do século vinte. Mas não é exatamente esta mera entrega sexual (ainda que linda) a minha referência. Sexo é assunto que transcende a tudo, e, portanto algo vital, e de uma essência primitiva, e de uma resposta prazerosa das mais verdadeiras que possa haver. Mesmo assim o homem, que inventou a cultura, com este ato criativo, se reinventou. Por isso preciso de mais do que Joyce e Nora precisaram. Preciso ajudar na invenção do novo homem, e, assim , reinventar-me. Preciso de um amor sujo e puro; de egoísmo, doação e troca; um amor com visão de trezentos e sessenta graus, que possa ver a flor e a lama, a branca gaivota no ar e o mendigo no chão, o maná de graça e o sangue dos sacrificados; um amor sinônimo de integração, de mistura – coisas que requerem uma compreensão infinita, que vai além da que estamos habituados; a que, infelizmente, nos condicionaram. Infelizmente, mas só por enquanto.
Preciso estar feliz comigo para que possa estar feliz contigo. E felicidade é que nem amor: palavra mal concebida, mal entendida, de mau jeito. A mim parece até que felicidade e amor são coisas imperceptíveis. Se notarmos a presença deles, não tardamos à dissimulação. Jamais pergunte a alguém se é feliz. Não pergunte a ele se está amando. Não são coisas respondíveis. E pior: faço o que não digo e não faço o que digo. Diga que me amas, fazendo assim o que não faço. Faça-me feliz e me ames. E não venhas me dizer que a vida não é boa: apenas eu tenho este direito. Aliás, eu me reservo ao direito de ser meu blasfemador primordial. Aquele que blasfema contra Deus, contra o Diabo, contra Jesus, contra o Espírito Santo, contra a Bíblia. Aquele que em quase nada crê, mas refere-se a esses entes como se falasse sobre o espermatozóide que o deu origem. Sou filho da cultura Divina. Possa que seja filho ingrato, pois Jesus é o pai de criação que me educou – ou um destes irmãos fraternos mais velhos que fazem o papel de pai – e Deus é minha mãe adotiva. Mas o fato que devem saber é que o Cosmo é meu verdadeiro pai. E a natureza, a minha verdadeira mãe – mãe biológica. O problema é o dito popular "pai e mãe é quem cria". A propósito: "criação" é outra palavra de uma dubiedade horrível em nossa língua portuguesa.
Sou o pai de criação do meu amor e da minha felicidade.
Um pobre coitado? Um pobre Diabo, como dizem nos filmes? Blasfemador miserável! Digam o que quiserem sobre mim. Procuro a sinceridade e o amor. Sou um homem interessado em compreender seu modo de amar. O modo como as pessoas amam e o que elas pensam sobre o que vem a ser o amor e suas implicações no bem-viver. Um homem em contato intenso e crítico com a dor de cada pequena coisa – mesmo a gerada por uma dúvida insignificante para outros. Um homem a amar-te da forma mais dolorida que se possa conceber.