RECICLANDO A VIDA

No último trimestre, tomei a decisão reciclar minha vida. Vasculhando o baú de recordações e o labirinto da memória, tive uma grata surpresa: tomei conhecimento de que os incontáveis objetos que por mim foram descartados, por julgar sem serventia, muitos deles ainda se encontravam intactos. Tão perfeitamente conservados que poderiam ser reutilizá-los, se assim quisesse.

Na lixeira mental, entre doces e amargas lembranças, reencontrei sentimentos antigos. Apreciei queixumes de amores e ex-amores, de amigos e inimigos (desconheço o termo ex-amigo) ou simplesmente recuperei o foco de sonhos e desejos que por falta culto ou aplicação de uso havia descartado. Muitos deles, carentes do meu afeto e mendigando um minuto de atenção.

Dei-me conta então, do quanto fui e do quanto sou medíocre e perdulário em administrar minha vida. Atiro na sarjeta do abandono heranças estruturais do meu ser como se elas não fossem as únicas responsáveis pela minha índole. E que de tão importantes e valiosas, não há como negar que a elas devo o aprendizado que nortearam e que nortearão meu futuro.

É por isso que os sábios dizem que carregamos um fardo que somente a providência Divina sabe, ao certo, quando e onde depositá-los para o repouso de nossos dias.

Tal fardo de heranças marca tão profundamente nosso semblante, que podem ser lido e interpretado com páginas de um livro aberto.

Mas ali estava eu, vasculhando meus sentimentos lembranças como se fosse um competente gari de entulhos mental. Reciclando a mim mesmo, revivia alegrias, tristezas, ímpetos e medos; ou remoçava momentos vividos ou emprestava um novo alento àqueles que não tive oportunidade ou competência para viver.

É Assustador descobrir que tomava Coca-cola com café para não dormir enquanto estudava para o vestibular; que adorava comer farinha com açúcar enquanto assistia televisão; que jogava futebol de botão e que depois ia roubar cana na chácara do japonês; e que por mais que queira negar, fiz tamanhas maluquices que só é possível acreditar porque elas estavam ali, vivas, na lixeira do meu passado.

Por falar em televisão; reencontrei com meus heróis e super-heróis, hoje aposentados ou descartados pela mídia. A eles devo boa parte de minha índole e reputação, tanto e quanto, devo aos velhos e inseparáveis amigos da infância e adolescência. É triste saber que por um motivo fútil ou sem motivo ou razão, alguns deles pereceram ainda na flor da vida. E que outros, por descaso ou desengano, já não cultuam o hábito e razão do viver. Mas tanto faz; ninguém nasceu para semente.

Dentre os objetos e volumes mais substanciosos colecionei memórias de papel. Creio que tenho aptidão para arquivista. Talvez seja essa a explicação para guardar revistas, livros e manuscritos com tamanha profusão. Se bem que, no presente, depois que adquiri um computador (em suaves prestações) passei a ser ao que chamam memória virtual.

Para quem gosta de escrever, manuscritos é uma preciosidade que jamais deveria ser jogada fora. Eles nos revelam muito além do texto que redigimos com letras toscas e desbotadas.

Dentre as peças mais caras encontrei livros, fotografias, cartões-postais, medalhas, e uma carta do meu avô dando-me conta de que a vaca havia parido meu presente. O bezerro Bayúca.

Em outro amarelecido lote revestido por elásticos, encontrei, entre inúmeras prendas de minha adolescência, colorido e amargo bilhete que dizia: SHÔ; SAPO. SAI DE MIM!

A mensagem chegou ao destinatário: meu coração.

Particularmente, não me recordo de, naqueles dias, ter levado a mensagem à suas últimas conseqüências; mas posso avaliar que meu coração não teve o mesmo julgamento. Depois desse dia, não mais insistiu no assunto comigo.

Depois de tanto remoçar lembranças, me vi dominado por um desejo de rever as pessoas que passaram e marcaram minha vida. Reencontrar velhos e novos amigos, em especial, aqueles que não mais sabia do paradeiro. Revê-los era a missão a que me propunha e, se possível, reatar o calor das nossas amizades.

Pus-me a campo; determinado a reciclar o passado que de mim e por mim, ainda existia. Retornei aos lugares onde vivi ou passei; procurei por pessoas, endereços, telefones e investiguei todos e quaisquer vestígios que pudessem me levar ao encontro daquelas que um dia cruzaram ou cruzei seu caminho.

Foram necessário cinco meses para atingir o objetivo maior de minha busca: rever a maior paixão da minha adolescência. Rever aquela meiga, doce e escultural criatura de olhos azuis. Que de azuis, de tão solenemente azuis, emprestava a ela uma áurea de santa.

Para mim, era uma princesa. A princesa do meu coração.

Foi assim que quarenta anos depois, reencontrei, na Feira do Livro em Brasília, a princesa da minha adolescência.

Era noite quente de verão. Lá me encontrava para divulgar o lançamento de uma coletânea poética. Ela por sua vez, colhida pela fatalidade do acaso; entrara na fila de autógrafos conduzida por uma amiga em particular.

Quando nos foi possível, trocamos um dedo de conversa. Dez minutos, creio. Dez minutos foram suficientes para falarmos da adolescência e remoçar sentimentos. Foi um momento inenarrável. Maravilhoso. Falamos do passado e do nosso presente; cada qual, com seu fardo de alegrias e tristezas e decepções.

Mas o que fazer; ninguém é só de felicidade.

Perdoem-me a franqueza. Por infelicidade dos anos, ela não mais possui os atributos que, na minha juventude, espelhavam o modelo de princesa. Para minha grata surpresa, carinhosamente, ela me confidenciou que jamais havia me comparado a um sapo.

Estou ciente de que não fora autêntica. Pois bem seis que para fato não há contra argumento.

A Feira do Livro acabou, a festa acabou, todo mundo sumiu, e a vida continua. E de todas venturas e desventuras que colhi, guardo com carinho essa uma lição: Se ela houvesse me beijado. Ah! se houvesse... Hoje eu seria um príncipe.

Antonio Virgilio Andrade
Enviado por Antonio Virgilio Andrade em 13/09/2006
Reeditado em 13/09/2006
Código do texto: T239237