A ESTÁTUA QUE CRIOU VIDA

Naquela manhã de quase meio dia o sol ardia a pino pela costa praiana da cidade de Lagos,região do Algarve.

Os turistas se mesclavam pela confusão das calçadas, quando um grupo adentrou pelo portal da bela e antiga cidade de "aura medieval" a disparar os flashes das suas ávidas máquinas fotográficas que freneticamente registravam todo acontecimento digno da posteridade.

E por ali não faltava cenário, sequer variadas cenas.

Eu me encontrava distante dos meus dois personagens, mas não o suficiente para não colher os dados deste meu registro.

Ele, um senhor já da terceira idade e indiscutivelmente de dons artísticos para a arte da vida, encontrava-se numa postura rígida e impecável de "estátua humana", com o seu rosto maquiado por uma pasta alva a contrastar com seus olhos azuis e que escorria junto ao seu suor pelas laterais da sua face, a adentrar pelo seu corpo que encenava encoberto por uma capa branca de grosso tecido.

À sua frente uma pequena caixa esperava pelas moedas dos turistas quando os mesmos se valiam duma foto daquela tão dura arte.

De repente ela entrou em cena.

Uma turista afoita e distraída, se empolgou com a beleza antiga duma "estátua de bronze" pouco atrás da "estátua de gente", disparando sua máquina em direção ao artista.

"Gostei mais da de bronze", balbuciou consigo mesma, deixando-me ouvir.

Não contente tirou mais algumas fotos da antiguidade e se foi sem sequer reparar na cena humana que se ali desenhava sob meus olhos.

Foi assim que, de súbito, vi a estátua humana criar vida.

"Te gustas señora?" gritou a estátua à turista que, numa esquina, rapidamente já se perdia dos meus olhos.

Mas a estátua insistiu no monólogo.

"Sacastes una foto, te gustas senõra? Miserables de mierda..."

Então entendi que se tratava dum estrangeiro que ali lutava pela vida.

Assim que entrei numa lojinha desabafei o ocorrido a uma vendedora.

"Esses vagabundos mambembes invadiram a cidade..." me disse ela.

Aquilo não me saía da cabeça..."miserables de mierda..."

Quantas maneiras de se ser miserável...

Quando voltei do meu tour preparei uma moeda para recompensá-lo pelo esforço,e pela sua decepção, porém o sol mais escaldante já não o permitia mais lá.

Me aproximei do seu palco branco e vazio aonde pude ler no tecido ao chão a inscrição do seguinte poema:

***

Que símbolo fecundo

Vem na aurora ansiosa?

Na Cruz Morta do Mundo

A Vida, que é a Rosa.

Que símbolo divino

Traz o dia já visto?

Na Cruz, que é o Destino,

A Rosa que é o Cristo.

Que símbolo final

Mostra o sol já desperto?

Na Cruz morta e fatal

A Rosa do Encoberto.

O ENCOBERTO (Fernando Pessoa)

***

Ali , sob aquele indiferente e escaldante sol, fui platéia do drama da miserável poesia que, de certa forma, nos assola a todos...em vida.

Nota:

"Em homenagem ao artista anônimo de Lagos.