O Zé
O Zé
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
Todos nós temos um Zé em nosso caminho. Sem ele a vida não tem graça. Não tem pique, não tem motivo. Fica vazia e incompleta. O Zé é a dona Maria de saias compridas e peruca loira. Onde quer que você vá, acaba encontrando um, nem que seja para lhe prestar uma simples informação de localização de rua ou o endereço de uma pessoa.
Sem o Zé no nosso cotidiano, as horas demoram a passar como os dias se tornam longos e se arrastam entediados num marasmo indescritível. Meu irmão é um que tem o Zé em alto conceito. O Zé, para ele, é um herói. Anônimo, é verdade, mas, merecedor de todas as medalhas e honrarias de destaque. O Zé salvou lhe a vida num desses domingos passados, em que ambos foram a praia fazer um piquenique com um grupo de amigos. Se não é o Zé, o mano, a estas horas, estaria na cidade dos “defuntos dormidos”, comendo capim pela raiz, dando bom dia para São Pedro e, para completar o quadro, de asinhas cor de rosa voando estabanadamente entre milhares e milhares de querubins.
Meu vizinho de porta também não fica de fora. Tem um Zé enrabichado vinte e quatro horas que não larga do pé. Desde pequeno são como unha e carne, escova de dente e dentifrício, caixa de remédio e bula, tampa e panela, chulé e frieira. Trocado em miúdos, aonde um vai, o outro igualmente chega junto. Parecem irmãos siameses. Já nos acostumamos a vê-los lado a lado, seja trabalhando ou saindo paras as baladas nos sábados depois da novela. Tem gente que fala pelos cotovelos dessa amizade pouco incomum. Inventam coisas as mais absurdas, picuinhas, disse me disse, porém, eles não estão nem ai para as fofocaiadas.
Para a Silviah Carvalho (atualmente em Curitiba, no Paraná), a poetiza das mãos de ouro e autora de versos perfeitos, sobre a arte do amor, o Zé é um algoz, um tirano, uma figura diabolicamente pernóstica. Ela não revela os motivos do porque pensar assim, do seu Zé, de forma tão negativa. Particularmente, tenho em mente que o cidadão faz fofoca de nós.
Ao oposto deste futriqueiro, minha filha Tonha adora o Zé. Ama de paixão. O Zé da vida desta pequena princesinha é aquele cara que copia os filmes que ela gosta de colecionar. Pirateiro igual a ele, ainda não topei com nenhum à altura. Tudo na casa dele é plagiado do original. Até a mãe, dona Santinha, quando aparece na sala com um copo de café quentinho, feito na hora, a gente logo percebe o tapa olho vedando o lado esquerdo do rosto. E precisa tomar cuidado, porque a bebida, embora pareça nova e feita na hora, na realidade é sucateada de algum bule esquecido sobre a pia, ou fundo de garrafa requentado do dia anterior. De roldão, o pó é pirata, o açúcar é pirata, o aroma, o sabor, se duvidar... Aliás, até a própria dúvida se queda em falta, presa às destrofias que se avolumam a sua condição de descrédito e desonra.
Para Seu Joaquim, o português dono da quitanda, o Zé é um picareta, um embusteiro de mão cheia, que compra fiado e não paga nem por reza braba. Quer ver seu Joaquim sair do sério, perder a compostura e o cálido humor lusitano, é perguntar para ele, ainda que em tom de brincadeira, se o seu Zé tem pintado no pedaço.
Dona Margarida, mãe da Lucinha, é outra que não fica atrás. Prefere ver o capeta na frente, de tridente, capa preta, comendo mariola e bebendo uma purinha – mas, o Zé, ah! o Zé, esse “desgranhento”, como ela furiosamente o chama, “nem coberto de ouro”. E cá entre nós, a boa senhora tem motivos de sobra. A galera de plantão descobriu que o Zé setentão não passa de um safado, sem vergonha; vive assediando a Lucinha quando a menina vai ou vem dos estudos.
Pois bem: o Zé que conheço e que me acompanha é único. Inimitável. Dotado da boa estrela da sorte, quase sempre me dirijo até ele para pedir aconselhamentos. Seja para assuntos de família, trabalho, ou questiúnculas particulares, que teimam em me atormentar. Sempre nessas ocasiões, Zé me ouve calado, e só depois de digerir tudo o que lhe foi exposto, com a serenidade e o carinho que lhes são peculiares, emite a sua opinião, e eu acato, com humildade, procurando discernir a lição de vida que me passa ou que me tenta fazer enxergar. O Zé, além da larga experiência de vida, é um sujeito que não faz mal a ninguém e a todos recebe na sua casa com um sorriso bucólico e benevolente. O Zé é uma alma em flor, um jardim esmerado, notadamente a ótica daqueles que cultuam a verdade e procuram seguir os preceitos da razão do bom viver, sem fazer mal ou causar dissabores aos seus semelhantes.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos é jornalista. (Ilha do Governador - Rio de Janeiro 18 de julho de 2010).
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