Quixotes

Um mundo sonhado como se deve, perfeito tornar-se-ia, mesmo diante das ilusões e dos pensamentos. Utopia que seja dita, e que digam lá as páginas daquele livro sereno e das duras imaginações, lidas de um pai concentrado para um filho sonolento.

Era assim que fizera desde muito cedo com o pequeno Alonso, em noites tão cálidas quanto pétalas de rosas que se desprendem dos pedúnculos. Naquelas mesmas tardes devoravam cada uma das páginas de “dom Quixote”.

Dentre alguns meses que se passaram o garotinho adquirira uns poucos centímetros, coisa que sempre sonhara e se esforçara para conquistar. Crescer! Queria ser alto, vestir-se da armadura de seu herói “De La Mancha”.

Alonso brincava sob aqueles relevos pastoris cavalgando o seu magnânimo cavalo alazão imaginário, brandia mortalmente a sua espada que possuía um corte que jamais existira e jamais poderia existir naqueles pedaços de tábua cruzados.

Enquanto a noite chegava de pés descalços e fugazes, a imaginação tomava-lhe um ou dois pontos do senso de realidade, os substituindo por miragens grotescas que apenas ela, a noite, tinha a capacidade de retocar com tanta magia.

De sua janela, Alonso podia ver os dragões. E quem se importaria que eles fossem moinhos-de-vento grandiosos quando a imaginação e talvez até mesmo as loucuras de criança pudessem transformar tudo aquilo em algo de desenvoltura profunda e fantástica? E quem teria coragem de destruir fantasias tão delgadas de um garoto que carrega o fardo da bondade?

Tal coragem foi aquela que fez com que o pai entrasse em “saias tão justas”. Não destruiria, como dito, a fantasia que ele mesmo cultivara na cabeça do menino durante todos aqueles crepúsculos da era medieval onde soavam sempre os bandolins. A chave da questão apareceu quando o pai perguntou à Alonso qual era o sonho da vida dele e teve um garoto que respondera: “ Quero algum dia ver um dragão bem de perto, como Quixote, papai!”

Ferreiro daqueles séculos antepassados, o homem pegara sua marreta e reascendera cautelosamente o calor de suas fornalhas, como uma fênix que ressurge das próprias cinzas opacas. Juntando então aquelas armaduras já deitadas em seus sepulcros ele martelava suas carapaças, rígido, fazendo-as cantar com pluralidade.

Da boca do forno surgia também uma boca metálica de mandíbulas espessas, das mãos rígidas nasciam garras também robustas. Aos poucos ia brotando-se a forja, lenta com o passar dos dias, fazendo os raros suspiros do fantástico lagarteio do fogo.

Naquela manhã, ao abrir os olhos, Alonso lembrou-se: era mais um dia do seu aniversário. Não se surpreendeu com o chamado do pai, mas sim pelo fato de sua voz vir do lado de fora, pedindo-lhe que viesse com os olhos tampados. Tinha na voz um tom de mistério, algo que cativava e que dobrava a sua curiosidade como ele exatamente dobrava aquelas pilhas de ferro para forja.

“Abra teus olhos e veja, meu filho”.

E ao levantar as pálpebras o menino teve refletido no metálico de seus olhos, a enorme superfície espelhada de um estupefato dragão de sucata, que lhe atravessava a retina e se assimilava no profundo aquático de sua visão...

... Dragão de lata que o fizera feliz, Dragão dos restos de lixos protetores de anjos mortos, que mesmo com suas infelicidades e azares, que mesmo com suas imprestáveis sobras fizeram-no um garoto mais maleável, cujo tempo jamais foi aturdido pela escuridão dos descrentes e refeito pelas mandíbulas da utopia do aço.