Capitulo 1 - Medo
Capítulo 1 - Medo
Talvez agora seja o momento de começar a descrever os fatos sem nem ao menos uma ordem lógica. Digo que agora seja o momento, pois antes tinha medo. Obviamente não quer dizer que neste instante não tenha. Tenho e muito. O medo existe e é constante. Quero tão somente me certificar que não seja insuperável, invencível ou insuportável.
É véspera de Natal e, para muitos, isso faz muita diferença. Mas para mim, não. Não faz a mínima diferença porque nunca tive nada disso e não estou me lamentando. Sei que pode parecer que, já que isso dói no fundo, poderia desdenhar como consolo hipócrita. Não era isso que eu queria. Não era do Natal que eu sentia falta. Ainda tenho medo. O medo permanece, mas tenho dois caminhos.
Quando saí de casa nesta manhã cinza escuro, com suas nuvens prenhes de tristeza e ricas em solidão e desespero, pensei que fosse mais longe. Fui, mas não da maneira que esperava. Não como planejei. Fui a espírito, se é que seja esse o termo apropriado. Fisicamente, não passei da segunda padaria mais próxima. O som do rio. Ainda o ouço. A ponte, os pássaros, as poucas pessoas saindo para trabalhar, comprar seus pães, afinal é segunda-feira, véspera de Natal que, para mim, não faz a mínima diferença, mas, para elas, talvez fizesse. Ou não. Ainda sinto o calor do medo constante em mim. Digo calor, pois o medo é quente. Senti quando, depois de degustar um pedaço de pão com alguma coisa morta dentro, sentei na beira do rio e observei aquilo que parecia uma furna de cobra. Umas só não, duas. As pernas gelam por fora e por dentro, queimam. Do outro lado do rio, a mata. Escura, fria e úmida devido ao sereno matinal. Galhos assustadores pareciam estar preparados para agarrar quem quer que os traspassassem. Do lado oposto à estarrecedora visão, as pessoas ainda andavam, falavam e brigavam:
– “Isso são horas de chegar?” - Pergunta o homem sem muita autoridade. Sua voz, ao contrário do que suas palavras pareciam representar, não tinha o tom de um patrão, mas sim de um empregado irritante e implicante.
– “Bom dia” – Respondeu a mulher como se estivesse saindo de um túmulo. Morta.
Na verdade, todos ali estavam mortos, só não pareciam saber disso. Os pássaros, o rio, a cobra, se houvesse uma, os homens, os trabalhadores, os vagabundos, eu. Todos mortos sem ainda tomar conhecimento.
Mirei em uma fina teia de aranha. Observei a aparente fragilidade de sua estrutura e pensei: como? Como seria possível tamanha evolução. Nenhum químico jamais conseguiria se desenvolver em um período de sua própria vida a tal ponto. Suas fórmulas teriam que ser passadas para a posteridade e, talvez dessa forma ele alcançasse seu objetivo: a evolução. A teia de aranha é um dos materiais mais fortes que se conhece. Cada fibra pode ser esticada em 40% do seu comprimento e absorver cem vezes mais energia do que o aço sem se romper. Se fosse tecida como uma rede usada em barcos de pesca, poderia segurar um avião enorme. Foi assim que aprendi. Pensei isso agora. Mas na hora pensei: como? Como pode haver uma teia de aranha se não houver aranha? E só então me lembrei de sentir medo. Como se não bastasse as pessoas mortas, as cobras, se é que existiam, o rio, a mata, a mim mesmo, ainda poderia ter uma aranha.
O maior perigo para mim era eu mesmo. Por dentro, no passado, no presente e no futuro. Queria ir longe. Nesta manhã eu havia me preparado para subir uma montanha. Seguindo uma trilha pela floresta para testar meu medo. Não precisei nem começar. O medo que senti ali não foi causado pelas coisas habituais que sempre assustam seres humanos normais. Alguém entre aquelas pessoas mortas, atrasadas, despreocupadas e ocupadas com sua véspera de Natal poderia sentir medo das aranhas, cobras, dos galhos ou de qualquer outra coisa que saísse da mata. Eu não. Eu tinha medo de as pessoas me olharem nos olhos e perceberem a verdade. A verdade que eu persistia em tentar esconder de mim mesmo. Em todas as circunstâncias, sem exceção, eu persistia em lembrar-me das coisas de que fora condicionado a saber. Meu suor exalava medo. Era cedo, mas eu já suava. Acabara de clarear. Raiando um novo dia. Minha sofreguidão permaneceria por muito tempo ainda. Ao planejar sair, antes de amanhecer, imaginei ir longe e fui. Na minha mente, voltei ao passado. Ao começo de tudo isso e hoje eu penso: como? Nesse momento as linhas de raciocínio correm rápido demais para serem registradas. Gostaria de escrever a quatro mãos. Uma não será o suficiente para escrever a quantidade de palavras que brotam de meu interior. Saem dessa mente perturbada e morta. Não. Definitivamente minha mente não está mais morta. Eu estou, mas ela, não.
O medo que senti me deu coragem para começar a relatar o que já vinha acontecendo há anos. Nunca iniciei essa tarefa por medo. Mas era medo de nunca ser lido. Medo de que não fosse suficientemente interessante para ser lido. Até este momento. Por que agora descobri aquilo que faz um homem desejar fazer parte da história de sua gente. Não como figurante, e sim como protagonista. Essa força faz com que esse homem coloque sua história para fora sem medo. Com toda a sua dor, ódio, amor. Amores intensos, constrangimentos, ciúmes, rixas, alegrias e momentos de paz. Ao menos os momentos de paz são comuns. A paz é universal, única. Não pode ser relatada porque é sempre igual para todos. Em todo momento de sua existência. Em qualquer lugar. (Apesar de que existem pessoas que encontram paz na guerra, mas é tópico para outro capítulo). Esse sentimento faz um homem estuprar seu orgulho, deixando de lado suas paixões e todo o sentimentalismo que estas carregam. Impossíveis e insanas paixões encenadas por um drama chamado de ‘vida real’. Como se existisse uma ‘vida irreal’. Mortos. Todos mortos. Esse sentimento tem nome. Ele é algo gerado em algum lugar recôndito, no cérebro. Não estou tecnicamente habilitado para descrever sua química. Se é que alguém o está. Creio que não, mas, muitos tentam. Olhem minhas vísceras, meus rins e coração. (Essa escrita persiste em me perseguir). Leiam o que há em minha mente. Virem a página de meu pensamento e saciem vossa curiosidade. Em meu livro há um capítulo que fala sobre cactos. Mas isso pouco te interessa certo? Errado. Vais ver o quanto estás errado, jovem. Deveria se interessar, pois eles são o motivo principal de tudo isso. Se quiser mesmo entender esse sentimento que me motiva a falar, torne-se um especialista em cactos. Eles ajudam a explicar.
O sentimento é o medo. Medo de nunca ser ouvido. Medo de nunca esclarecer. Justificação para o injustificável. Perdão para o imperdoável. Existe pecado imperdoável. (Sempre volta essa lavagem cerebral.) Não consigo fazer mais nada em que essas informações não apareçam. Resisto por um tempo, mas logo me entrego. É mais forte. Muito mais forte do que eu. Se algum dia li algo que ficou registrado, essa informação retorna serelepe quando pareço dela precisar. Se algum dia ouvi algo, essa informação retorna saltitante quando pareço dela precisar. Se em alguma merda de dia eu armazenei algum tipo de informação referente à lavagem em mim aplicada desde a juventude, essa informação persiste em aparecer quando ela mesma, assim como um software, decide ser necessário, não importando minha opinião. (Ainda verão muito disso nas páginas seguintes, dessa forma, se não suportar, rasgue esse livro e viva em paz).
Fui levado a crer que existe um pecado imperdoável e por isso resisti em falar o que penso. É como um gesso em um membro fraturado. Os ossos calcificam. Endurecem. Eles realmente ‘colam’, mas nunca mais são os mesmos. Pouca gente sabe disso. Minha mente está curada, porém calcificada. Dura e morta. Não. Minha mente não está morta, mas eu estou. Limitado pelas limitações impostas pelo pecado. Medo do pecado imperdoável. Medo da morte e, mais do que isso: medo de desobedecer. Adão. Judas. Fariseus. Pelos homens julgados. Jonas. Onde estava Deus? Fui forçado a crer que por causa dele, Adão, estamos aqui agora. Pior do que ser forçado. Não o fui. Em nenhum momento fui forçado. Mas em nenhum momento me sinto, hoje, persuadido a ficar. Pergunto-me: como? Como engoli isso por tanto tempo? Ao tentar sair, encontro a resposta.
Ao ler isso, veja a petulância minha em achar que alguém leria esses mal-escritos rabiscos, pense em como me sinto. Foi o medo que criou essa segurança que antes era ofuscada pelo medo de não ser lido. Ou medo de não ser entendido, ou ainda pior, medo de ser descoberto. Nunca fui pego. Se estiveres a ler é porque errei ou morri. (Digo isso, pois, outros lerão e, mesmo que até o dado momento não tenha sido descoberto, serei após essa enfarada e estúpida confissão).
Ao encostar-se ao espinho de um cacto, se contrairá para baixo e dirá alto: “ai!”. Pensará que isso é dor. Quando se sente dor. Mas dor não é algo que vem de dentro. Pelo menos não da maneira espúria como acima relatada. Saudade é dor. Como me lembro de ter escrito certa vez. Mais do que simplesmente a inocência de sentir falta, além da carência daquilo que não se pode ter. Muito mais que um grito encurralado na garganta ou a falta de um sorriso que não se pôde ter. Muito além do que a consciência pode pensar sem resistir à displicência e se entregar. Além de toda dor ou qualquer sentimento de felicidade apenas nesse momento sinto saudade. Mas não se expressa para fora. Vem dos outros, do lado de fora e mexe com você a ponto de movê-lo a fazer algo tolo, como escrever sobre seus medos. Simplesmente faz pensar que fez, mas não o fez e fez. Depois acontece tudo de trás pra frente e começa tudo novamente em outro idioma. E, naquele instante, naquele milésimo de instante você fala todas as línguas do mundo ao contrário. Pensa em todas as palavras possíveis dentro de todos os vocabulários e até em idiomas mortos, que não são mais usados. Criando novos idiomas, pois os que já vêm em sua mente não são o bastante para expressar o que pensa e o que sente. Criando idiossincrasias para animais extintos e para outros que você mesmo criou. Quando tudo começa a fugir do controle e não pára de crescer, o homem que tem o conhecimento do que é a dor, consegue respirar e coloca sua mente no lugar, domina aquilo que sente e escreve. Se libertando do mal. Ele sabe que, ao acabar aquele segundo, tudo some e dificilmente volta. O que foi falado se perde, o que foi criado passa do estado de criado para o de não existência. Só restam escritos em um papel, isso se tiver um papel. Podem ser apenas riscos de grafite ao ar. Isso é o medo. Mas não é a dor.
É como uma viagem. Pelo que já li, em alguns momentos, alguns homens, conseguem registrar, em algum lugar de sua mente, um pouco do que viram na viagem. Anos depois criam estórias das mais gostosas e jocosas de ler, achando que são apenas fruto de sua criatividade e imaginação. Nada é criado. Tudo é real. Pode não ser completamente real. Mas contém fragmentos de realidade banhados com óleo inventivo. Se você conseguir guardar um pouco que seja de sua viagem interior movida pelo medo, com certeza criará algo profundo. Algo tirado de um lugar que só você pode tirar porque estava dentro de você. Isso faz de você e de mim, pessoas únicas. E saber que, pelo medo desenvolvido em cativeiro, algo genérico, criado em laboratórios artificiais, por causa de um condicionamento barato, você vai e deixa tudo isso de lado em prol de algo que é forçado a acreditar, já que todos ao seu redor acreditam. E só por isso. Nada mais.
Consegui chegar a essa conclusão sentado em um banco artificial, na beirada de um rio artificial, comendo um pão artificial com um pedaço de coisa morta artificial. Foi então que decidi que precisava provar que meus instintos estavam certos. Uma prova. Eu não precisava de mais nada. Mas os outros sim. O mundo também. Artificialmente, bolei um plano infalível. Para provar a não existência de um Deus. Uma diabólica (não no pleno sentido da palavra) e maldosa idéia que iria mudar os planos de muita gente boa. E arrasar a boa vida de muita gente má.