(Roupa Nova) Viagem a Terra do Nunca - Capítulo XIV

Capítulo XIV

Tobias Barreto, Outubro de 1959

Uma alegre turma de meninos corria atrás de uma nuvem de içás, uma espécie de formigas com asas, fêmeas da espécie saúva, muito comum em várias regiões do Brasil. A cantoria enchia as ruas de Tobias Barreto, a cidade em que eu nasci: “Cai, cai, Tanajura, na panela da gordura”, gritávamos todos nós, felizes por aquela molecagem.

Valia de tudo para pegarmos as içás: chapéus, panelas, camisas e o que mais tivéssemos a mão na hora da divertida caçada aos bichos. Os mais corajosos não esperavam as formigas serem torradas para saboreá-las: comiam-nas cruas mesmo. Eu não chegava a tanto, apenas arrancava o abdômen das formigas ou enfiava um palito de fósforo nelas para ver as asas fazendo barulho.

As proximidades do Natal traziam para Tobias Barreto uma grande variedade de frutas: mangas, mangabas, jacas, cajus, enchendo de cores e cheiros as ruas da cidade em que eu morava com a minha avó e minhas tias.

Nessa época de minha vida eu tinha muitos amigos: o Assis, filho de Bié, um libanês baixo e atarracado, dono de uma bodega bem em frente ao armazém que o meu avô possuía; Toinho e seu irmão Fernando, dois meninos com quem eu ficava horas a jogar futebol de meia e comendo tamarindos da árvore plantada no quintal da casa deles; Gaguinho, que morava numa casa de tijolos, ainda sem acabamento; Naldo, um moleque meio maluco que um dia me acertou uma pedrada em plena testa, filho de uma matrona obesa de nome Joana e mais alguns que formavam os aguerridos times que se esfalfavam no gramado existente no final da rua em que morávamos. Por essa época eu ganhei um conjunto de calças curtas, camisa e suspensórios que era a última moda em vestimentas infantis, acredito eu. Fiquei orgulhosíssimo no dia em que enverguei aquela linda fatiota que me fora presenteada.

Um dia de Domingo, minha tia da Glória penteou os meus cabelos com esmero, colocou bastante brilhantina neles para domar os longos cachos castanhos claros e me ensinou a amarrar os sapatos pretos que eu também iria usar pela primeira vez. Lembro que fiquei bastante tempo contemplando no espelho aquele reflexo de mim mesmo, vestindo calças curtas azul-marinho, camisa branca de mangas compridas, uma gravatinha borboleta e sapatos e meias pretas. Meus olhos cinza escuros soltavam chispas de felicidades, incapazes de conter tudo aquilo escondido dentro de mim. Eu estava enamorado de mim mesmo, feliz da vida com os presentes que ganhara.

Depois de me mirar bastante, de treinar andar de sapato por todas as dependências de nossa casa, aventurando-me também pelo quintal, minha tia da Glória, sempre protetora, permitiu que eu fosse fazer a minha estréia na rua, passeando pelas calçadas próximas.

Era tudo o que eu estava esperando: poder finalmente mostrar para todos os meus amigos o quanto eu estava feliz metido em minha roupa nova.

Abri a porta de nossa casa, que dava diretamente para a rua, olhando maravilhado para um céu incrivelmente azul, quase sem nuvens, em torno das dez horas da manhã. Minha postura era quase marcial, tão ufano eu me sentia.

Não dei mais do que uns dez passos pela calçada, quando escutei a vaia mais estrondosa que um ser humano já recebeu em toda a sua vida. “eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeê”: todos os meus amigos, companheiros de pelada de bola de meia e de caça ao içá haviam se reunido para me apupar daquela maneira inesperada. Àquele magote de invejosos logo se foi juntando outros meninos que eu nem conhecia.

Minha primeira reação, ao ser apupado, foi ficar paralisado: não sabia o que fazer diante daquela chusma.

Reagir seria impensável, estava totalmente fora de questão, dado o enorme número deles (Se bem que a vontade de atirar umas boas pedradas neles me veio à cabeça). Dei meia volta e fui me resguardar na redoma protetora da casa de minha avó, ainda a escutar os apupos que vinham da rua.

Minha tia da Glória, vendo aquele tumulto, saiu à frente de nossa casa e passou uma descompostura geral naqueles pestes.

A atitude da minha tia só fez ainda piorar a situação para o meu lado: ao invés de espantá-los, os xingamentos da minha tia conseguiram atrair mais moleques para conferir o que estava acontecendo.

Apesar dos meus oito anos quase completos eu sabia que somente uma atitude firme minha poderia dar fim aquela situação criada pela minha linda roupa nova. Respirei fundo e sai de nossa para a rua outra vez, envergando a minha roupa nova de que eu tanto me orgulhava...

Toda a molecada foi tomada de surpresa: não esperavam que eu saísse de casa tão rápido e os enfrentasse. Ficaram olhando parados, incapazes de qualquer reação, enquanto eu andava tranquilamente com a minha roupa nova, já blindado contra a inveja daqueles monstrinhos infernais.

Continuei o meu passeio sem sequer dirigir um mísero olhar para qualquer um deles.

Ignorei-os solenemente e saí pelas calçadas vizinhas feliz da vida, a desfilar com a minha roupa nova que tanto rebuliço causara.

Aprendiz de Poeta
Enviado por Aprendiz de Poeta em 16/07/2010
Reeditado em 29/12/2018
Código do texto: T2381229
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