NORMALIZAÇÃO

O ano é 2018, Fernando e Ana voltavam de uma festinha na casa de uns parentes. O carro que Fernando dirigia, além de Sandra, encontravam-se Ana, sua irmã e Sérgio marido de Ana. O papo era animado, embora Fernando deixasse transparecer alguma tensão, as duas irmãs comentavam a festa. Sérgio, sentado no banco de trás ao lado de Ana, observava atento a estrada. Fernando, porém com a visão privilegiada, observou de longe no alto os balões mais temidos pelos motoristas noturnos. Alguns metros à frente Sérgio percebeu que alguns veículos efetuavam manobras para não passar pela blitz da operação tolerância três zeros. Os balões, cujas cores diferentes distinguiam cada um dos “zeros”, a operação tolerância “zero de álcool” era representada pelo velho balão branco, o balão laranja era da operação “zero de energético” e o vermelho era o da operação “zero de gordura.”

Fernando ao volante, como de costume sempre que dirigia procurava evitar consumir quaisquer substâncias duvidosas, mas desde que a resolução conjunta do ministério da saúde e o ministério da justiça determinou que a lei de tolerância três zeros se estenderia a todos os ocupantes dos veículos, passou a se preocupar com quem carregava na carona. Principalmente pelo fato de que as três substâncias em questão, agora estava na lista da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), de substâncias controladas. Quando Sandra se deu conta do que estava por ocorrer questionou Fernando:

– O que vamos fazer?

– Não sei. Eu estou zerado. Respondeu. Imediatamente Sérgio se manifestou.

– Pessoal, eu comi dois hambúrgueres ontem!

– Puta que pariu! Proferiu Ana.

– Você me prometeu que ia parar com esta merda Serginho!

– Vamos ter que voltar. Sentenciou Sandra.

– Por quê? O exame da gordura só acusa para casos com menos de 24 horas! Replicou Fernando.

– Mas tem mais uma coisa. Disse Sandra com ar de quem iria fazer uma confissão.

– Esta escova no meu cabelo... foi feita com formol. Despejou Sandra, como se assumisse um crime. O formol, diferentemente das outras três substâncias, entrou para a lista de substâncias proibidas.

– Há não! Porra Sandra onde você conseguiu formol! Esbravejou Fernando.

¬ – Isso não interessa agora. É melhor encostar ai na frente e tentar retornar!

– Interessa sim amiga. Contestou Ana.

– Também quero a fonte, afinal só neste mês, lá no nosso bairro, descobriram mais de cinco salões de cabeleireiros clandestinos e as escovas nos salões legais triplicaram de preço.

– Agora não é hora pra isso Ana! Advertiu Sérgio.

– Você não se meta! Seu comedor de gordura. Não me venha dar lição de moral não!

– Não estou dando lição de nada, mas depois você fala sobre isso. Agora agente precisa retornar.

Fernando já jogara o carro no acostamento, esperava o momento certo para tentar o retorno, sabia que teria que dar uma volta enorme para chegar em casa. Indignado com Sandra, com a cara amarrada, deu meia volta na estrada e ligou o rádio do carro que acabara de instalar naquela semana. Agora não precisava mais de se preocupar com os decibéis, pois o aparelho que comprara já vinha com um sistema automático de limite máximo de volume permitido por lei.

Ao retomar a estrada, o ambiente já não era o mesmo dentro do carro. Sérgio voltou a olhar pela janela, Ana, apesar de curiosa para saber onde Sandra conseguira o formol, mantinha-se calada. Sandra por sua vez, sentia-se culpada, mas não pelo caso do formol e sim por não ter confessado que havia fumado dois cigarros naquela noite. A pena para quem constasse nicotina no sangue era de dez meses de serviços comunitários e a obrigação de participar de um programa de reabilitação. Os cigarros ela conseguiu com a dona do “salão” onde fez a escova, a proprietária transferiu tudo que estava na sua loja para o porão de sua casa, desde que a normativa que regulamentava os requisitos mínimos para a legalização dos salões de cabelos e manicures entrou em vigor no ano anterior.

Ana assim que desceu do carro, antes mesmo de entrar na casa, disse a Sérgio que no dia seguinte ligaria para Sandra e descobriria onde ela conseguiu fazer a escova de formol. Sérgio abriu a geladeira sem dar ouvidos para o que Ana falava, sentou-se ao sofá com uma lata de cerveja sem álcool e sem glúten e ligou a TV, enquanto Ana foi para o quarto com um copo d’água na mão, abriu a gaveta da cabeceira, apanhou um blizter com dois comprimidos do seu ansiolítico e deitou-se. Sérgio esperou Ana dormir e comeu um hambúrguer que havia escondido no armário.

Ao chegar em casa, Fernando foi deitar sem dar boa noite a Sandra, ela se jogou no sofá e ligou a TV sem dar uma palavra, estava louca por um café de verdade, havia pelo menos uns seis meses que ela não tomava um expresso. Os mercados só vendiam café descafeinado, as cafeterias legais exigiam cadastro dos clientes para controlar o consumo de cafeína. Fernando deitou-se e procurou relaxar, pensou que no dia seguinte, era um domingo, ele como de costume, receberia a família de Sandra e faria um churrasco com carne de soja e filé de peixe.

Jcarval.

J Carval
Enviado por J Carval em 16/07/2010
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