Sapatos velozes
Ligou para o Monteiro dizendo:
— Desapareceram…
Ele compreendeu logo tudo some. O próprio horizonte desaparece. O horizonte é melhor não por acaso, mas por ocaso… Estava convencido, mas seguiria se lamentando. Melhor que fugisse ao trocadilho. Onde andam os sapatos agora? Trilhando o Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo? Tonga, Kiribati ou Tuvalu? Vejo-os percorrendo estradas, vales, montanhas criando para o homem simples da volta do prado uma hipótese de liberdade. Sobra felicidade num acidente quando se precisa de espaço para viver longe do trabalho árduo, duro e escravo. É como se até o joelho quebrado da tarde libertasse. Convencemo-nos de que aos poucos o tempo escoa por mais que se agite a fantasia certa. Há um tempo para se saber vazio como coelho de mágico morto aprisionado dentro da última cartola num d A casa é o depósito onde desabará a chuvarada que está por vir. Não raro chove no exato dia da folga. O coração nessas horas tem um quê de cozinha acesa, mesa, receita, sobram invocações, lembranças, saudades. Faca, pão e manteiga registram uma ordem de coisa certa, diária que se manifesta em fragmentos.
Lá fora correm os homens com sapatos velozes. Invejo-os como quem zomba com discrição atrás de tanto respeito. Zune o vento que é um leque sobre o mar das horas. No espelho o rosto escuta às boas noites, além das frases gentílicas. Frases bordadas com palavras mágicas doadas à primeira silhueta da noite. Hora de sumir no café noturno bem no centro do país numericamente enganado. (A humildade se perturba nos excessos). Brilha a chávena de chá empoeirada e sem uso. O leite no bule parece dizer adeus quando derrama. O homem descalçado em pleno dia útil sentindo-se esplêndido como um galo na capoeira cacarejando a certeza das auroras para o amanhã.
Ontem era eu quem recebia ordens na hora de sair: que despachasse o empregado e corresse para o porto. Cortasse espaço, fosse amável com a gerência, abrisse portas, àquelas que levariam o homem sem sapatos para o mar. Pois, tudo se reconcilia diante do mar. Batem á porta e sei que sapatos não voltam. Abro a porta e é Igaci com periquito em gaiola provisória de bambu. Insiste para que eu cuide do pássaro enquanto parte para o Rio. Faz recomendações, diz que a pequena ave barulhenta é metáfora, pavãozinho de inço. Aposta comigo. Mais alguns dias de convívio e falará corretamente o idioma dos gramáticos. Espera de mim que não seja nada ou pouca coisa tudo isso. São horas de ir e ficamos.
Igaci vai viver o Rio, beber Leblon, amar e flanar no Amarelinho. Deixarei a gaiola aberta de propósito para culpar o gato e me vingar de nunca poder partir. Será meu único prazer culpar o gato ajudará para que Igaci não chore e nem me odeie. Sento-me com os pés descalços na banqueta, apoiado por extremo sentimento de liberdade, aquela total independência que murmura: ora, vamos por este atalho. Depois Igaci acredita em tudo, em tudo…