POR ACIDENTE

Num momento tudo esta em ordem, em outro instante, o caos invade e o encanto da dualidade acerta as contas, e te pega, te derruba e se você aguenta, você se levanta, dança um pouquinho, samba e compreende que tudo não passou dum balanço do ritmo da vida.

Gosto de ter controle sobre as minhas coisas, prefiro ser auto-suficente, cuidar da minha vida de forma independente, sem precisar pedir ajuda de ninguém, sem necessitar dos outros para me auxiliar. Sou uma Águia, costumo afirmar, num eterno voo solo nesse caminhar na Terra. Sim, nesse continente, costumo atuar como se eu fosse uma ilha, até o mar balançar...

Vinha eu com os meus livros dentro de um ônibus, seguindo em direção a um aluno nessa terça chuvosa que passou; aperto a campainha, a condução parou no mesmo ponto que desço sempre, sem novidades, tudo muito repetitivo, aparente, como manda a rotina, como dita o tempo; algumas pessoas descem na minha frente, sou o último, preparo com um braço o guarda-chuva, com o outro me seguro; estou descendo e pensando já no outro ônibus que me levará da Avenida Santo Amaro para o Broklin, quando, o motorista fecha a porta e acelera com a metade de mim dentro, metade já lá fora; despenco! O pé fica preso na porta, o corpo balança em direção ao asfalto, e para não bater a cabeça na quina da calçada, escoro-me com o braço, apoiando toda a queda em meu ombro que faz crack e creck e da minha boca sai um urro de dor. O ônibus segue me arrastando, lama, água, asfalto no rosto, vento; a chuva caindo, o povo gritando, outros carros buzinando, um alvoroço, e finalmente, o ônibus parando há tempo.

As portas se abrem, ganho o meu pé de volta, o resto do corpo se encontra com o asfalto e vem ao chão. O braço que apoiou a queda está fora de lugar, uma dor maior do que eu achava que poderia aguentar me pede grito, choro, mas respiro, pois acabei de virar pão para todo o circo que se forma ao meu redor. Alguns tentam me ajudar, seguram-me pelo braço quebrado, só fazem piorar.

- Não me toquem! - eu grito, sabendo que em acidentes assim, a melhor ajuda é não tentar levantar a pessoa caída, teoria que vira prática comigo na pista, mas surrealmente, o ombro faz creck e crack novamente e naturalmente volta para o lugar; coloco-me de pé, a multidão abre alas para eu passar, sento no banco do ponto, a multidão quer quebrar o ônibus, o motorista sai de lá assustado e vem na minha direção.

- Por favor, me perdoe - seus olhos são puro desespero, ele sabe o que fez e que a multidão furiosa vai mostrar a que veio. Quero gritar com ele, quero que ele pague pela dor que me causou e que nunca mais repita aquilo - O senhor escorregou ao descer, não foi? - ele diz e eu gritando mentalmente, respondo:

- Como assim escorreguei? Ficou louco? Você e a sua pressa quase me mataram!!!

Circo pegando fogo, eu rosno com o olhar, a multidão grita, e ele suplica novamente:

- O senhor caiu, não foi?

Respiro uma vez, uma segunda e enfim, jogo água no fogo e respondo:

- Sim, escorreguei! Não foi culpa dele!

O motorista agradece com um olhar e a multidão enfurecida volta ao seu lugar; lição para ele aprendida, talvez por toda a vida; para mim, que lição há?

Tudo parece no lugar, meu ombro queima nervos, respondo "estou bem" umas mil vezes a todo mundo que se oferece a me conduzir até um hospital, chamar um taxi ou ao menos telefonar para alguém que venha me pegar.

Recuso, agradeço, e sigo; o circo se disperza, sei que preciso cuidar do ombro, é meu braço direito, o meu ganha-pão, o meu faz-crônica.

Penso em ligar para minha esposa, para a minha irmã ou um amigo, mas não faço nada disso; e já me sentindo seguro e bem de tudo, pego outro ônibus e volto para casa, sem aprender a lição que o acidente me contava : saber pedir ajuda na hora certa era a moral da história.