Elevação de um pensamento
“Tripulação prepare procedimento de descida”.
Não escutei exatamente o que foi dito. O som margeou meu pensamento enquanto deixava a atenção literalmente sobrevoar o mundo cotidiano nos arredores de São Paulo. Viagens sempre nos preenchem com possibilidades, com novos olhares... A cidade iluminada parecia uma infinita colcha de retalhos brilhantes.
Os murmurinhos comuns e um leve choramingar infantil embalavam meus pensamentos. Bienal do livro, retorno à cidade maravilhosa, reencontros... As viagens, mesmo as rotineiras, podem se transformar em pontes para novas percepções.
O choro infantil ganhou força. Era uma clara demonstração de medo, desconforto e dor. Estiquei o corpo na cadeira e pude ver, no colo da mãe na primeira fileira, os cabelinhos espetados pretos e finos na pequenina cabeça. Diante da insistência do choro, a mãe o balançava na altura dos ombros, tentando distrai-lo. Mas...
“Por isso não quero ter filhos. Imagine isso toda noite!”
“Querido, já estou com trinta e seis anos, preciso...”
“Sempre falei que não queria crianças. Você concordou...”
“Mas eu tinha vinte e oito, hoje tenho trinta e seis. Preciso...”
O casal sentado ao lado aproveitou para debater o assunto que os dividia. A criança chorando, a impotência instaurada em todos os passageiros, o nervosismo das comissárias que tentavam agradar o bebê... Enfim, todo o estresse instaurado e à tona com a expressão de desconforto do pranto infantil desencadeou o extravaso das angústias cotidianas e reprimidas dos que se deixaram preencher pela manha.
O homem ao lado aproveitou para apresentar um forte argumento para não querer filhos. A esposa, com fragilidade, assumia o tempo e a necessidade de preencher o ventre. A percepção da vida e dos seus anseios mudou nos anos de casamento.
Os seios de uma jovem mãe, que se afastara do filho de cinco meses para uma viagem de negócios pela primeira vez, transbordaram leite. Em seu instinto maternal, só um seio quente poderia compensar tanto desconforto. Tanto a roupa como seus olhos molharam-se. As lágrimas desciam discretas. “Será que meu filho também chora?”
Vinte minutos, o suficiente para que todos os passageiros se manifestassem. Analisassem os reais motivos do choro, sustentassem suas opções naquela legítima expressão e se observassem no pequeno ser no mundo.
“Pressão no ouvido.”
“Acho que a mãe deveria amamentá-lo.”
“Resistência às mudanças.”
Todos expressavam suas conclusões depois de longas jornadas aos próprios interiores. Acho que o choro transcendeu o sujeito e projetou-se em todos os seres amadurecidos que o cercavam. Todos elaboravam suas vivências: desejo de ser amamentado, dificuldade de mudar, anseio de amamentar o mundo, negar o futuro, instintos de procriação...
Todos queríamos chorar, mas prendíamos o choro em argumentos racionais e palavras de sentidos ambíguos.
O avião aterrissou e, para minha surpresa, apesar do barulho e do impacto, a criança parou de chorar. Os demais passageiros continuaram a falar sobre os motivos de desconforto e dor, como educar as crianças e ensiná-las a conviver com a frustração e o medo. Acho que não perceberam que o bebê já havia se acalmado ou simplesmente compreenderam que a criança que sobrevive em nós nunca calará por inteiro.
Escutei a comissária brincar com o menino e perguntar para a mãe se iriam ficar em São Paulo. A mãe respondeu com a voz embargada que era apenas uma conexão. O destino final seria Manaus.
No saguão do aeroporto, encontrei a mãe com a criança sorridente no colo, aguardando a chamada para seu novo embarque. Imaginei como uma expressão infantil pode desestruturar os alicerces dos adultos e, quase literalmente, lançar no ar as emoções e certezas.