Cartas Perfumadas
Cartas Perfumadas
A chuva torrencial empapava a rua de terra batida e cascalhada que cortava a cidade como um ingongo, bicho do qual aquele aglomerado de casas perdido no meio do Nada recebia o nome: Gongogi.
De coloração vermelho escuro, própria para o plantio do cacau, o ouro verde da região Sul da Bahia, o barro grudava nos nossos sapatos como chamego de namoro a começar, fazendo-nos cuidar com muito desvelo das roupas recém adquiridas.
Prá justificar tanto cuidado com nossas indumentárias, tínhamos a confirmação de que haveria festa no sábado à noite, com uma orquestra vinda de fora, trazendo em seu caudal moças e rapazes de todos os cantos próximos de nossa cidade.
Fatiotas vistosas e penteados especiais ornavam os corpos jovens de moças e rapazes, a esperar com impaciência pelo grande momento que trazia vida nova a todos: o Baile.
Na fantástica noite em que o baile finalmente aconteceu, a Associação Atlética Pedrinhas recebia lotação total, dado a grandiosidade do evento, com todas as mesas colocadas no salão ocupadas.
Chegando ao clube, olhei em torno, procurando uma cara conhecida, buscando compartilhar espaço numa das mesas, com a leveza própria dos meus quinze anos. Salvou-me do perrengue o meu professor de Inglês, Raimundo, um monumento de ébano de quase dois metros de altura e muita elegância; elegância esta que foi adquirida em seu viver por terras estrangeiras, mais propriamente nos Estados Unidos.
Ali, sentado na mesa de meu professor, a esconder a timidez atrás de um copo de cerveja com guaraná, eu observava os pares dançando, iluminados pela mágica luz que emanava dos lustres pendurados no teto do salão. Nunca antes eu havia dançado com uma menina, o grande sonho dos rapazes de minha idade, menos ainda nas dependências do clube.
Enfatiotado num terno surrupiado no guarda roupa de meu avô, surpreendi-me com uma bonita voz perguntando-me se eu queria dançar...
A dona da voz era parenta, por afinidade, do meu professor de inglês, o meu salvador daquela noite. Ela tinha o rosto emoldurado por uma cascata negra de cabelos que paravam em uma cintura que parecia de mentira, tão adelgaçada era.
Ouvidos moucos aquela princesa morena fez ao meu fraco, e não muito convincente, explicar de que não sabia dançar. Sem mais delongas, saiu a conduzir-me, com uma insuspeitada maestria, para a pista de danças.
E ali, nós dois, encobertos pela multidão de outros pares, protegidos numa redoma de paz e encantamento, com a música “O Milionário” nos penetrando a alma num perene inebriar, o barulho da chuva repicando no teto do salão, e um par de olhos de jovem ariranha cravado nos meus, o mundo pareceu parar...
Como resultante de todo esse cadinho, um beijo inesperado, um daqueles beijos que a gente nunca esquece, e nem pensa ser possível existir.
Pela primeira vez eu estava sendo beijado por uma garota, e, apesar da luz estroboscópica, havia centenas de olhares cravados em nós dois...
O gosto daquele beijo inusitado era bom... um pouco acre e viscoso como a semente do cacaueiro, trazendo junto com ele a estranheza de uma língua pioneira a percorrer os caminhos ainda não desbravados de minha boca.
O baile chegou ao final, e nos dias a seguir, depois que ela foi embora para a cidade em que morava, a espera das cartas que ela me mandava semanalmente era premiada com o inconfundível perfume que impregnava o papel em que eu lia, com beata adoração, as promessas de amor eterno que a sestrosa morena me fazia em sua bonita caligrafia.
(Célia Margarida tinha o cheiro e a pele tépida como as pétalas da flor que lhe emprestava o nome.)
Crônica escrita em São José dos Campos numa fria noite de Setembro, com a cabeça voltada para as quentes noites de Gongogi.
Vale do Paraíba, Setembro de 2008