JORGE

“Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam e, nem em pensamentos eles possam me fazer mal...”

A oração de São Jorge estava escrita na primeira página da velha agenda, que encontrei na área de serviço do meu apartamento. Concluí que fora jogada pelo homem preso esta tarde, no terraço do prédio ao lado, durante uma batida policial que surpreendera a vizinhança. O homem reagira violentamente, muitos tiros foram trocados na perseguição e este era o assunto de meus vizinhos, reunidos no saguão do prédio, quando cheguei do trabalho.

Algumas vezes vi o homem alto, moreno, cabelos escuros e bem penteados, na tabacaria ao lado do prédio onde moro. Aquele homem, de olhar frio, parecia fervoroso devoto de São Jorge. Portava uma corrente com uma grande medalha do santo e a acariciava constantemente. Soube que se tratava dele, por que o zelador ao contar-me sobre a prisão fez referência ao medalhão.

Protegida pelo anonimato e surpresa, não resisti à curiosidade. Passei as folhas da agenda nervosamente, precisava decidir o que fazer com ela, mas não sem antes dar uma espiadela. Entre a vizinhança, as opiniões eram variadas e, eu, que não tinha opinião formada, agora tinha nas mãos esta "preciosidade".

Com dificuldade, li algumas páginas. A letra irregular e os erros denunciavam a pouca habilidade com a escrita, uma surpresa para mim, tratando-se de um homem tão bem apessoado.Talvez por isso ele fosse tão calado.
Lembrei-me do anel que usava, que me fez pensar que fosse graduado. Talvez seja um advogado do interior, pensei na oportunidade. Aquele sujeito chamava atenção.

Eu jamais poderia supor o quão surpreendente era o conteúdo daquela agenda. Era um relato de vida, não sei com que intenção.
Contava da dor de um menino de 5 anos ao ver o pai assassinado e dos horrores que veio a seguir. A mãe entregou-se definitivamente ao álcool, abandonou o trabalho, esmolava pelas ruas, nem na prostituição foi bem sucedida. Morreu com cerca de 30 anos. As irmãs mais velhas, ele presumia que com 11 e 13 anos entregaram-se a promiscuidade e com isso traziam alguns trocados para casa, muito aquém do suficiente. Depois, desapareceram e ele nunca mais soube delas.
A fome era intensa, mas a dor maior era o olhar das pessoas quando se aproximava para pedir um prato de comida. Faminto e sozinho, abandonou o barraco e vagou pelas ruas até que, aos 10 anos uma senhora bondosa percebeu pelo vermelhão de suas bochechas que o menino desnutrido estava febril e gravemente enfermo. Ela o acolheu, cuidou da pneumonia e afeiçoou-se a ele.
Dona Iracy, a benfeitora, ensinou o garoto a rezar, era devota de São Jorge. Proporcionou-lhe inesquecíveis cama e sopa quentes, maçãs e bananas deliciosas, até leite e bifes suculentos. Agora ele ia à escola. Isto é a felicidade, escrevera ele.

Durou pouco, ela morreu de um ataque cardíaco, presumira. Ela queixava-se do coração frágil e um dia não acordou. Ele chorou horas junto ao corpo e jurou que nunca mais passaria fome e que seria um homem respeitado.
Reuniu os pertences e todas as jóias da bondosa senhora, avisou aos familiares e desapareceu.

Ainda não tinha 15 anos, mas conhecia como ninguém a vida nas ruas. Negociou habilmente as jóias por drogas e tornou-se o que é: um “respeitável” traficante. Não confiava em ninguém, agia sozinho, quando necessitava de outras pessoas, depois ele as matava. O mesmo destino era dado às mulheres com quem se envolvia, quando acreditava que elas já sabiam demais.
O seu único parceiro confiável era São Jorge.

Bem, a julgar pelo ocorrido nesta manhã, creio que São Jorge abandonou o dragão.

* Texto produzido na Oficina Mãos à Obra Literária.
Tânia Alvariz
Enviado por Tânia Alvariz em 14/07/2010
Reeditado em 22/07/2010
Código do texto: T2377794
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