UM SER CHAMADO POETA

Ainda não havia parado naquela tarde para meditar qualquer coisa que seja. Relembrar momentos... Perder-se em lembranças... Derramar lágrimas de saudades.

As mãos ásperas porém, tocaram a madeira recheada de grafite e teceram na sensibilidade branca do papel as linhas que formavam toda a poesia de sua vida. Tinha pressa. Enquanto lá fora em um horizonte que conhecia de todas aquelas tardes, o arrebol tingia o céu em nuances de fogo.

O olhar se perdeu no calendário na parede à sua frente. Quantos dias se passaram desde que passara a contar todos os minutos de sua vida? Ou melhor, relembrar todos os minutos vividos? A réstia de sol formava sombras sem forma em todas as direções enquanto as linhas cresciam as formas de suas lembranças. Lembranças que balançavam qual o pêndulo do relógio da outra parede ao lado.

Tanto tempo... Talvez quarenta e poucos anos... Naquele dia era quase fim de verão. Poucas chuvas. O vento frio que prenunciava o outono já trazia algumas folhas secas e os mistérios que se escondem nas suas cores. O vento leva e traz tantas coisas além da poeira e das folhas secas do outono. Traz lembranças adormecidas nesses mesmos outonos que passaram e ficaram num cosmos quaisquer. Eles mesmos ressecaram os músculos de sua face e contorceram o sorriso que tantas vezes marcara seu semblante.

Mas junto com o vento, além das lembranças, viera a alma poeta que durante muito tempo vivera em terras secas. Agora entre aquelas mesmas paredes de sempre, nesta tarde, seu vulto debruça em folhas alvas e o pensamento viaja longe da realidade e dos mistérios dessa mesma tarde, embora ela lhe sopre nas narinas o oxigênio mais puro trazido pela brisa. Podia sentí-lo agora de uma forma diferente, porque descobrira tantos sentimentos que se aspiram junto com ela.

Sustenta-se agora nesses sentimentos que fazem nascer palavras. Agora mais do que nunca jamais fechará a janela antes da tarde se pôr naquele horizonte que fertiliza suas próprias palavras.

Quase sem perceber deixa que os sentimentos e lembranças fundam seu presente ao passado. Solta as rédeas de toda lembrança e ouve os estalos de seus cascos a pisarem as pedras de sua vida. Havia se acostumado ao silêncio de suas queixas todos esse anos e às feridas que verteram o sangue dado em todas as suas lutas. Era um domeiro incansável da vida, a buscar sempre essa doma que jamais deu certo.

Mas jamais se doma a vida que possui cada corpo e depois se esvai além de um horizonte que não se conhece: o horizonte da morte. Há algo além dessa linha de horizonte que jamais se enxerga. Ela tem traços da noite que esconde as sombras vermelhas da tarde e mistura-se às poucas estrelas no céu.

É esse o momento de todas as orações passarem no silêncio das retinas e despertarem inspirações que aspergem através da negra tinta de uma grafite as linhas de tantas histórias; os poemas de todos os sentimentos. Realmente a noite está envolta de estrelas e orações e na sua memória todas as lembranças e saudades possíveis que se transformam em crônicas e poemas.

Seu olhar poeta perde-se agora no mundo das palavras. O corpo continua vergado sobre as folhas brancas. Apenas os sentidos sentem a tarde partir e a noite bafejar-lhe no rosto a brisa mais angelical. Seu corpo é apenas uma matéria cujas carnes, ossos e veias se equilibram em um ser que chamam de alma. Entretanto a alma... Essa expõe todos os sentimentos possíveis a um ser que chamam de poeta.




Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 11/09/2006
Reeditado em 12/12/2008
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