Lycanthropy Lycanthropy
Noite quente de lua cheia e céu estrelado. Duas da manhã.
Ele sentado na janela do terceiro andar, fumando e olhando distraído para a rua. Só o brilho do cigarro e sua silhueta contra a luz da lua. Estava nu.
Ela deitada de bruços, também fumando, balançando as pernas pensativa e satisfeita, calma, em paz, só admirando o perfil daquela silhueta.
O telefone toca. Ela atende. Ouve por alguns minutos. Desliga.
- Era a recepcionista...
- E o que ela queria?
- Pediu pra você sair da janela. Tá queimando o filme do motel.
- Você falou pra ela que a gente tá pagando essa merda e eu posso ficar como e onde me der na telha?
- Falei. A cretina foi educada, mas quando falei isso ela disse que ia chamar a segurança.
- Que inferno.
- Mal comida. Se tivesse vendo o que eu estou vendo...
- E o que você está vendo?
- O homem mais lindo do mundo.
- Deixa disso.
- Sabe que é, babaca!
- Ei, vem ver uma coisa.
- O quê?
- É meio macabra a visão daqui. Tem o sanatório aqui do nosso lado direito e mais ali adiante, do lado esquerdo, tem o cemitério. E essa lua cheia...
O telefone toca novamente. Ele atende.
- Era a recepcionista de novo, pedindo pra eu sair da janela.
- Que mina chata.
- É. Falou que vai subir com a segurança.
- Que se danem. E me diga: o que você estava imaginando olhando a paisagem?
- Ah, licantropia, mortos ressuscitando e subindo os muros do cemitério, os loucos comendo uns aos outros e os mortos comendo eles e vice-versa.
- HAHAHA você é doente.
- É, e mais ainda: como todos teriam a noite de farra, sairiam do cemitério e eu achei uma ótima idéia a gente invadir o cemitério...
- E pra quê invadir um cemitério? Teremos toda a eternidade nele depois de morrer.
- Sim, claro, mas morto não transa.
- O que você quer dizer?
- Ah, porra, pára de ponderar. Sabe do que eu to falando.
- Digamos que sei mais ou menos, mas ainda estou tentando entender onde você quer chegar com esse devaneio.
- Eu explico: daqui da janela eu pude ver uma ab...
Batidas na porta.
- Quem será, lindo?
- Não sei. Se cobre que eu vou ver.
- Assim, peladão?
- O que é que tem?
- HAHA essa eu quero ver.
Ele abre a porta. Era a recepcionista e um mulato de estatura mediana, com nariz quebrado e orelhas de couve-flor. Um lutador.
- Pois não?
- O senhor pode, por gentileza, colocar uma roupa? Está desrespeitando a moça.
- Deixa disso. Não há nada aqui que ela já não tenha visto por aí. E em que posso ajudá-los, senhoras e senhores?
- Moço, não é por nada e eu sei que você tá pagando...
- Digno.
-... é que a vizinha viu seu exibicionismo e ligou aqui avisando que vai chamar a polícia.
- Ela agüenta morar entre um cemitério e um sanatório, de frente para um motel e um homem nu a espanta a esse ponto?!
- Pois é.
- Tá, vou parar de me exibir na janela. Tenham uma boa noite.
E fechou a porta na cara dos dois, acendeu as luzes do quarto, pegou o cinzeiro de pedra, foi até a janela e jogou o objeto no telhado da vizinha. As telhas se rompendo escandalosamente e um vira lata latindo assustado. Sentou na janela e esperou. Continuava pelado.
- Será que você matou a fofoqueira?
- Tomara.
Continuaram esperando. Nada.
O segurança, acompanhado de outro gorila, entra no quarto com uma cópia da chave com o punho fechado e com faíscas no olhar. Mas o quarto estava vazio, a cama estava impecavelmente arrumada, com as toalhas ainda dentro da sacola largadas no balcão de controle de som-tv-ar. Vasculharam o quarto. Nada. O banheiro estava seco. Na pia continuavam inertes os kits de banho.
- Ué, cadê eles?
- Cê tá sonhando, nego. Ninguém esteve aqui.
- Sonhando? Aqueles cretinos estavam aqui há apenas dez minutos.
- Eu já falei pra você parar de beber.
- Estranho...
Neste instante, vindo do cemitério, um som de dois cachorros uivando para a lua ganhou a madrugada.