PEDAÇOS  DA MINHA  INFÂNCIA  - PARTE VII

Cacolo em 1952.

Por volta das 5 da tarde o Papá Lacerda acompanhado do seu secretário, o Papá Teixeira de Sousa, saía da Secretaria onde passava o dia a trabalhar nos assuntos diversos relativos à administração do Concelho dos Quiocos. Aí se resolvia quando fazer as queimadas do capim seco, quem ia avisar às sanzalas para que capinassem à volta para que o fogo não as atingisse, aí se decidia o dia das caçadas para prover de carne fresca a população, lá se resolviam as macas (contendas) que iam desde agressões a roubos; o Papá Lacerda era o advogado de acusação, de defesa; depois de muito parlamentarem (dias e dias de argumentos em que queixosos e acusados montavam acampamento com todos os familiares e animais domésticos ao lado da administração e onde todas as noites havia uma batucada maravilhosa à volta de uma grande fogueira; a Administração fornecia fuba de mandioca e peixe seco para ajudar a alimentar uns e outros), o Papá Lacerda era também o Juíz. Claro que depois daqueles dias todos de farra quase que já nem se lembravam do motivo da maca e entretanto até já tinham todos feito as pazes... Ou então a sentença era decretada. ("Roubaste 2 galinhas? Pagas em galinhas ou em dinheiro? Pagas em mandioca? Então, paga!" ) . Assunto resolvido!

E mais coisas importantes como impostos, "voluntários" para as minas de diamantes da Diamang, a construção dos barracões para as Campanhas de Vacinação da Varíola, etc. (Pentamidina...) e sei eu lá que mais!...

Antes que os Papás saíssem da Administração, já as Mamãs Raquel e Stela tinham tratado da filharada quanto a banhos, roupa mais aprumadinha, lanches engolidos e, ou em nossa casa ou em casa do Papá Teixeira de Sousa, esperávamos os valentes trabalhadores para lhes fazermos companhia ao seu lanche e depois assistirmos (nós, os garotos todos) às intermináveis partidas de canasta entre muitos risos e palhaçadas, que iam até à hora do jantar que era ora em casa de um ou de outro.

Um belo dia, estávamos todos na nossa varanda à espera deles e quando já vinham a meio caminho saímos todos, Mamãs e crianças, ao seu encontro. Encontrávamo-nos a poucos metros deles e um rugido alto e profundo de leão soou-nos "ali mesmo ao lado"... Foi o som mais aterrador que grandes e pequenos ouviram nas suas vidas! Um medo atávico, vindo do tempo das cavernas, apossou-se de nós... Ao segundo rugido já nos encontrávamos, não sabemos como, dentro de casa e a fechar as portadas de madeira interiores das janelas! O meu pai chamou os nossos empregados e inquiriu-os quanto ao que eles pensavam sobre onde poderia estar o leão. -"Deve estar para os lados do cemitério, patrão". - foi a opinião unânime. O cemitério estava a uns meros 5 km o que para um leão em liberdade não é nada... Os nossos Papás dispensaram o pessoal para que eles pudessem regressar a suas casas ainda com luz do dia e com o leão certamente, um pouco longe dali. E logo ali ficou combinado que depois do jantar haveria uma batida ao leão para o afugentar da zona que era bastante populosa.

Os Papás Lacerda e Teixeira de Sousa empunham cada um uma caçadeira das que havia na nossa casa e eram usadas nas caçadas, e escoltam a família do 2º a sua casa para que eles também pudessem dispensar os seus empregados a tempo.

Depois do jantar os nossos Papás combinam quem acompanharia os caçadores essa noite pois a Mamã Raquel e a Avó Ilda revezavam-se para que a criançada não ficasse sozinha em casa. Ficaria a Avó, decidiram. Todos deitados e acomodados nas suas caminhas. Com tantas emoções os mais pequenos adormeceram rapidamente mas eu não. Senti e ouvi todos os preparativos para a saída, o ligar da carrinha, a porta da rua a ser fechada à chave, as portas da carrinha a fecharem também e a saída barulhenta da mesma. Fez-se silêncio na casa mas do exterior chegavam-me os ruídos da noite que nessa em especial estavam mais variados que o costume: uma hiena riu ali muito perto da janela do nosso quarto (pareceu-me...), uma ave não identificada fazia um "tuí-tuí-tuí" irritante, rãs coacharam no laguinho dos patos... E eu alerta sempre à espera de ouvir o rugido do leão, cheia de medo! Resolvi atravessar a casa às escuras e ir ter com a minha Avó à sala onde ela estaria à espera. E lá fui. Cheguei à porta fechada mas confirmei que ela estava lá pois havia luz que eu vi pelos vidros que existiam sobre as portadas e ouvi o barulho de folhas de jornal a serem folheadas... Tive vergonha de confessar o meu medo e regressei para a minha cama e acabei por adormecer. No dia seguinte soube que não viram leão nenhum e voltaram para casa desconsolados.

Passados anos e falando nesse dia memorável soube que, efectivamente estávamos sós em casa pois tanto uma como a outra não queria ficar sem ver o leão...

Ao saber isto fiquei gelada de susto e medo: "Quem é que estava na sala a folhear jornais naquela noite?" E lembrei-me do que dissera anos antes no dia em que ali chegáramos, o Administrador que o Papá Lacerda ia substituir:

-"Colega, na casa vive um antigo colega nosso que depois de se passar para o outro lado, resolveu mudar-se para a casa onde foi tão feliz. Ele não incomoda nem faz mal. Deixem-lhe os últimos jornais na sala que ele gosta de estar a par do que se passa pelo Mundo"...

Beijinhos,
Teresa Lacerda
Enviado por Teresa Lacerda em 11/07/2010
Código do texto: T2371556
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.