CULTURA DE ORELHA
Cultura de Orelha
No mês passado, li uns cinco livros e tenho mais cinco para ler até o final do mês. É verdade. O prazo para ler é restrito, em virtude de dois de esses livros serem emprestados por uma amiga. Dei-me esse tempo, porque preciso dessa leitura. Faz parte de um trabalho que estou desenvolvendo em várias prefeituras. Jamais vou imitar um cara da minha cidade que, para dar a impressão de que era culto, vivia alardeando leitura de livros e mais livros. E quando lhe perguntavam alguma coisa sobre o livro em questão, ele apenas fazia alguns comentários, o suficiente para deixar seus amigos boquiabertos, a ponto de exclamar:
-Que cara inteligente! Sabe tudo. É demais...
-Olhe os livros que ele já leu!
E ia desfiando títulos e mais títulos. E outro, mais bobo ainda, dizia:
-Aqui não tem ninguém mais culto que ele!
E foi assim que o nosso amigo adquiriu a fama de intelectual e passou a ser admirado até pelas pessoas mais cultas da cidade.
Mas aqui em Brumado morava um padre, na época o pároco da paróquia, muito inteligente, leitor contumaz e de uma vasta cultura, conhecia uma infinidade de autores famosos, desde os grandes poetas e oradores gregos e romanos, aos romancistas das literaturas nacional e estrangeira e filósofos de todas as épocas. Era assaz conhecedor de muitos assuntos.
Esse padre, professor do Colégio da cidade, não obstante ensinar Latim e Psicologia dava a seus alunos informações importantes sobre quaisquer assuntos e contava histórias engraçadas e educativas que extraía dos livros. E o cara de quem lhe falei, caro leitor, era aluno desse padre. Comentava sempre com o seu professor algumas passagens dos livros que supostamente lia. Num dia era comentário de autor estrangeiro, noutro dia, de autor brasileiro. Não tinha predileção. Era qualquer gênero de leitura.
O padre, como era muito astuto e perspicaz, já desconfiava há algum tempo dessa erudição do nosso personagem. Como anotara títulos de livros que seu aluno citava nas suas conversas, iniciou a releitura desses livros para avivar a lembrança de alguns, lidos há muitos anos atrás.
Certa vez, ao final da aula, o padre chamou o nosso leitor e convidou-o para ir a sua casa, a fim de conversarem. Ele ficou muito vaidoso e esnobava os colegas:
-Vocês não lêem, não têm papo para conversar com um padre!
No dia marcado, lá foi ele para a casa do padre. Esbanjava presunção... O professor recebeu-o muito bem e foi logo dizendo o porquê daquele convite:
-Tenho percebido, através dos meus conhecimentos, que você quer se passar por intelectual no meio dos seus colegas. Na verdade, acho que não é. Lembra-se do livro de Dante Alighieri que leu outro dia?
-Não. Agora não me lembro.
-Não se lembra de uma obra tão importante? Deve lembrar. Vamos, fale! Comece a desenrolar tudo para mim.
E o nosso intelectual ficou vermelho como um camarão e não saiu nada a não ser o título do livro. E assim, o padre foi citando as obras que ele antes “lera” e agora já não se lembrava de nada, quando muito o título e algum personagem.
O padre fez-lhe ver que ninguém pode ludibriar as pessoas, principalmente amigos, com mentiras que só a ele prejudicavam. Muito envergonhado, ele confessou ao padre que lia somente as orelhas e comentava com os amigos, dando a parecer que lera a obra, pois não tinha tempo e nem dinheiro para comprar tanto livro. Quando ia à Biblioteca, fazia a leitura das orelhas. De outros livros que não tinha orelha, lia alguns comentários. E, ainda se desculpando, falou que ele, um moço pobre, que viera da roça, deveria ter algum atrativo para despertar o interesse de alguém e pensou em se mostrar como um moço inteligente e culto. Ademais, sua aparência física não ajudava.
Dessa passagem, podemos subtrair o seguinte: não se deve enganar as pessoas, porque a verdade um dia aparecerá. Nada fica encoberto para sempre. Outro ponto a considerar é a cultura que prevalece sobre outros aspectos. Na sua atitude, demonstrou que o conhecimento tem uma importância considerável na aceitação do indivíduo pela sociedade.