Memórias de leitura
Memórias de leitura
Acho que nasci com fome. Fome de ler. E que fome! O ABC?! Devorei em uma semana. E, diga-se de passagem, lendo e relendo. “Revoltando o texto”, como dizíamos à época.
Livrinho sorrateiro, pequena grande janela a se abrir para um novo mundo. Cata-capim grudado em vareta de bambu com visgo de jaca. Assim fui eu, fisgada pelo BA-BE-BI-BO-BU.
Minha primeira escola. Escolas Reunidas da Vila de Iraporanga. Uma salinha, onde ainda hoje funciona o cartório da vila. Meu primeiro ano escolar. Quanta saudade! Carteiras não havia. Levávamos os bancos de casa. Tamboretes na cabeça. Por sorte morava ao lado da escola. A primeira professora: minha madrinha. Como a adorava. Como admirava suas belas unhas pintadas de “Fátima”. Cantávamos “Bem-vinda professora” com o peito estufado de orgulho. E ela, mais orgulhosa ainda.
Na hora do dever os anjinhos do Senhor ajoelhavam-se no piso duro a rabiscar as primeiras garatujas. A pintar em todas as direções, desenhos tão caprichosamente elaborados pela querida professora, “minha dinda”.
Logo eu queria mais. Queria muito mais.
Letras, sílabas e palavras não saciavam mais a minha fome. Nascia o irresistível desejo pelos livros. Tesouro já conquistado pelos alunos adiantados. Páginas cheias de gravuras e de segredos. De histórias e aventuras.
O tão sonhado dia! Ganharia meu primeiro livro. Tão ansiosamente aguardado. Enfim chegaram os livros para o ano seguinte. Livros comprados com tanto sacrifício.
Para mim, uma cartilha... ROXA! Tudo na cartilha era roxo!!
Hoje, sem traumas, adoro a cor lilás. Mas naquela época...
Que decepção! Meu tão sonhado livro era roxo. Capa, textos, gravuras. Parece que tinha caído num pote de tinta. Quanto mau gosto. Quanto desgosto para uma meninazinha de bochechas rosadas e vestidinho colorido.
Para o ensino infantil, cartilhas feias, pobres, sem atrativos. Já nas séries adiantadas tudo era diferente. Só agora percebo o descaso. E nem quero citar a escolha dos professores. Sem desconsiderar, evidentemente, minha querida madrinha, professora leiga, excelente educadora.
Meu irmão faria o primeiro ano. Seu livro, bem diferente do meu. Capa colorida a atiçar minha visão. Num vôo rasante meus olhos vislumbraram a gravura de um circo, com sua empanada multicor e palhacinhos sorridentes. Bandeirola num mastro a balouçar numa espécie de convite.
Convite aceito de corpo e alma, pois esta já se encontrava totalmente entregue àqueles seres encantados que povoavam o livro: macaquinhos saltitantes, leões agitados nas jaulas e na minha imaginação. Malabaristas em pernas de pau.
Desprezo e encantamento sacudiram meu interior. Monocromia versus policromia. Para uma criança, beleza é fundamental. Cor é luz. É brilho.
Havia feito minha escolha!
Num ímpeto incontrolável, pequeninas mãos lançaram-se sobre o tão cobiçado tesouro. Eu era Simbá no Vale dos Diamantes. E nada, nem ninguém, conseguiria arrancar aquela preciosidade de minhas garras.
Choveram súplicas. Explicações. Promessa de surra. Tapeações. Oferecimentos. Nada! Juras de castigo. Conselho. Conversa. Promessa de presente. Revolta de meu irmão. Nada! Só choro. Mais choro. Reclamação. Desistência...
Vencidos pelo cansaço, o livro era meu!
Hoje recordo o rosto angustiado de meu irmão. O ar de derrota. A ira contida. “Perdoe-me, mano. A minha fome era tanta que fiz você perder o seu apetite pelos estudos”.
Compromisso firmado. Conseguiria acompanhar os alunos do primeiro ano. E como consegui. Passei no exame final com louvor. Quanto a meu irmão... Coitado. Amargou mais um ano com aquela cartilha horrorosa. Adiantei um ano e ele atrasou.
Por que não estudamos juntos com o mesmo livro? Por que ele teve de repetir a cartilha? Até hoje não consegui entender a lógica da escola.
O fato é que meu irmão, a partir dali, preferiu ‘badocar’ em vez de assistir às aulas, o que lhe rendeu dúzias de palmatórias e eu, continuei saciando a minha fome de leitura pelos textos afora.
Livros didáticos eram relidos durante as férias. Sentar à sombra da tarde para ler os livros novos era um deleite. Ir à venda comprar sabão em pedra, uma viagem. Pedaços de jornais velhos, sujos de sabão eram lidos com prazer. HQs, horóscopo, classificados, notícias, notas de falecimento, bula de remédio. Enfim, tudo era material de leitura. Tudo era lido e relido com satisfação.
Mais tarde vieram as fotonovelas. Culpadas pelos puxões de cabelo que levei. Perdi a conta dos sustos, ao ser flagrada lendo escondido as revistas de minha irmã. Revistas ocultadas debaixo do colchão, que meu faro de detetive descobria sem cessar. Ela, já moça. Eu, ainda menina, já sonhando com os galãs das fotonovelas italianas. Ainda me recordo de Milani. Que pão! Opa! Que gato! As cenas. Os amores não correspondidos. As traições. O ciúme. A ansiedade pela leitura do próximo capítulo. Quem leu fotonovela sabe do que estou falando e sentirá saudade.
Hoje fico irritada com o excesso de merchandising nas novelas televisivas. Perdeu-se a essência da dramaturgia novelística.
Tudo bem. Essa é outra história.
Ah, como esquecer os gibis?! Mônica com seu coelhinho azul. O Cebolinha e seus eles: ”- Pála, Mônica!”. O Cascão com seu pavor de chuva. Todos eles ainda povoam a minha mente e me fazem companhia na hora do relax.
As revistinhas de faroeste, então, foi um capitulo à parte. As adorava. Leitura compartilhada com meu tio garimpeiro, amante do saber. Leitor contumaz. Grande exemplo para mim. Causos e anedotas do garimpo. Lendas e contos de assombração a me fazer dormir agarrada aos pés de minha mãe. Pena não ter registrado tantas histórias.
A adolescência foi compartilhada com as Sabrinas, as Biancas, as Júlias. Histórias de amor carregadas de conflitos como as fotonovelas. Mocinha apaixonada pelo galã. Homens infinitamente lindos, másculos, mas prepotentes e arrogantes, que no final se entregavam à paixão. A temática era sempre essa. Mesmo assim, trocávamos entre as amigas como álbum de figurinhas. Viajei pelo mundo através desses livrinhos. Desbravei continentes. Amei a Europa. Conheci países e regiões que jamais verei.
E finalmente Para gostar de ler, leitura sugerida pela escola. E na sequência, os clássicos. Alencar com as suas Senhoras. Machado com os seus conflitos. Gonçalves com os seus índios. Leituras obrigatórias para avaliações e resumos. Mas nem isso diminuiu meu apetite.
Nunca parei.
Ainda hoje continuo faminta. Na leitura faço dieta para engordar.
Leio o real, o possível, o necessário. Leio o impossível, o fantástico, o belo. Leio por todos os motivos. E até sem razão.
Se me disserem que ler é um vício e que o livro é uma droga, eu simplesmente respondo:
“Pode ser que sim. Pode ser que não.
Faça boas escolhas e deixe fluir a emoção. “
Suzana Durães Viana
Iraporanga, 08/07/2010