Sobre meninas, livros e palavras

Esta crônica não é só um texto seco sobre um livro de páginas sem vida e de palavras silenciosas. Não. Se é isso que você espera ao lê-lo, uma dissertação concisa e denotativa sobre uma obra literária, relatando seus pontos altos e baixos, sua métrica e suas formas, sinto muito, não irá encontrar tais coisas aqui. Feche essa página, procure alguma outra e siga seu rumo. Essas palavras que aqui escrevo não irão parecer em nada com uma dissertação imparcial. Pois estas frases, estes parágrafos e o texto inteiro que aqui lhes mostrarei, serão pura e em sua totalidade tomadas pela emoção. A emoção de alguém que, como poucos, consegue sentir o pulsar da vida de um livro.

Desculpem-me pela introdução confusa e exacerbada. É que neste momento, neste exato instante em que meus dedos correm desesperados pelas teclas deste computador, meu coração ainda pulsa com a enxurrada de emoções que me foram passadas enquanto eu lia. Dizer que eu “li” é um pouco de desmerecimento à experiência. Pode-se até dizer que chega a ser um total desrespeito. Pois o que eu vi nas páginas alvas do livro que até minutos atrás tinha em mãos não foi só uma fábula ou um conto bem trabalho. O que presenciei, assim como todos os outros que já repousaram seus olhos sobre as linhas “d‘A Menina que Roubava Livros”, não é algo que se vê e se esquece em seguida. O que se vê ali é uma vida, uma existência contada nos mínimos detalhes e, de forma tão tocante que, ao seu final, é impossível não se sentir parte daquele mundo, parte daquela história.

Neste instante, me sinto coberto pela poeira dos destroços que outrora foram as casinhas de caixa de sapatos da Rua Himmel. “Himmel”, que em Alemão significa “céu”, não poderia ter um título mais apropriado para o que representa. Tanto para Liesel, que lá viveu por tanto tempo, quanto para nós, que só conhecemos a rua de vista, enquanto passeando pelas páginas do livro, o lugar tinha realmente esse significado. Era aconchegante. Nem sempre calmo, é bem verdade. Entre uma briga e outra de algumas vizinhas que tinham por tradição cuspirem em portas pertencentes a seus desafetos e algum grito perdido de “saumensch”, em meio a um jogo de futebol em uma rua enlameada ou mesmo em meio a uma marcha de judeus esfarrapados. Não importavam as circunstâncias, lá era o local mais aconchegante em que se poderia estar. Pois lá era o lar, para Liesel. E para nós, que acompanhavamos tudo como espectadores atentos, era o cenário principal. E agora, enquanto os escombros da nossa rua, que outrora fora o céu, são removidos taciturnamente pelos membros do partido nazista, não há como nos mantermos indiferentes. A poeira impregna nossa respiração, bloqueia nossa visão e, misturando-se com nossas lágrimas, escava estradas escuras e sujas em nossos rostos estupefatos. Pois é aqui, nesta mesma rua onde até poucos dias os garotos jogavam bola despreocupadamente, que agora seus corpos sem vida são enfileirados.

Tamanho aperto no peito não pode ser causado por uma simples história. Tamanha tristeza, tamanha sentimento de perda não é criado por uma fábula simples. O que se sente aqui é a prova viva do poder imenso que as palavras têm. Para aqueles que vivenciaram a aventura, para aqueles que acompanharam o romance, é preciso que estes mesmos se perguntem: “Será que tenho eu o mesmo dom que a roubadora de livros?”.

Pois eu lhes respondo que, agora que findou-se a leitura, ou melhor, a vivência, eu me sinto um pouco como Liesel Meminger. Pois eu lhe entendo perfeitamente quando ela diz que ama e odeia as palavras.

Tal como com ela, muitas vezes me aconteceu de conhecer através das leituras mundos muito melhores do que este em que de fato existo. Este poder delas, das palavras, de poderem criar lugares longínquos e, ainda assim tão próximos ao nosso, tão diferentes e ainda assim tão realísticos, é que nos hipnotiza. As palavras tem um poder incomensurável, um talento criador sem limites. Só o que é preciso para que esse poder se liberte e realize as mais incriveis façanhas é um pequeno ingrediente: a criatividade.

Só é preciso que uma mãozinha criativa e cheia de ideias tome uma caneta e algum papel e então, comece a criar, comece a libertar toda a força das palavras. E elas podem nos apresentar lugares tão bons. Lugares que vão nos fazer sonhar por meses. Pessoas que vão nos roubar o coração, mesmo que elas não passem de um bocado de tinta em uma folha de papel velho. Ou mesmo ruas empobrecidas que, por mais irônico que possa soar, se chamam e representam o“céu”.

Se você consegue compreender o quão poderosas são as palavras, você entende o porquê do desejo crônico de Liesel de tê-las mais e mais. E assim se entende as razões da roubadora de livros. Mas livros? Não seria correto chamá-la de menina que roubava mundos? Ou talvez vidas? Histórias ou até mesmo existências? Afinal de contas, são todas essas coisas que os livros representam, não? Não são só palavras, não são só tinta e papel. São vidas. São experiências. Somos eu e você. E Liesel, e Rudy, Jesse Owens e o Mein Kampf. Um judeu lutando contra Hitler em um porão congelante. Ou um livro que sobrevive a uma fogueira nazista. Todas essas coisas e cada uma em especial, são os livros. As palavras. A imaginação. E depois de perceber e sentir tudo isso, de se entender pelo menos parcialmente o poder e a atração irresistível que as palavras exercem, você ainda assim conseguiria condenar alguém por querê-las mais e mais? O mundo seria muito melhor se tivessemos muitíssimas mais meninas que roubassem livros. As palavras não se subtraem. Não existe de fato o furto. O bem material, o livro, a capa de couro, o papel e a tinta podem até ser mensurados em valor material. Mas a história não pode ser roubada. Não pode ser tirada de ninguém. Esse é o tipo de bem que ficará com alguém para o resto de sua vida. Não importa quantas vezes um livro for roubado, ele não poderá mais sair de você. Pois uma vez lido, ele passa a ser parte de você. E você irá sentí-lo eternamente.

Contudo, o que me entristece muitíssimo, mesmo após saborear tão esplêndida vivência que encontrei no livro, é a pergunta que martela a minha mente sem cessar: Como pode, o mesmo ser humano que, com o poder das palavras, cria um mundo magnifico como aquele da Rua Himmell, ser tão passível de fazer o exato oposto em seu mundo “de verdade”? Por que nós, que criamos universos tão belos nos livros, não somos capazes de fazer o mesmo em nossa morada de carne e osso? Ou será que a nossa criatividade benevolente se limita apenas às palavras?

No fim das contas, não há como saber. Por mais que se pense, por mais que se acredite que se sabe tudo, nós acabamos sempre surpreendidos por alguma atitude completamente além das nossas expectativas. Depois de tudo isso, só consigo lembrar do que diz a Morte e, ligeiramente envergonhado, concordar: Os seres humanos me assombram.