Requien Aeternum (Parte 3)
Heitor calcula.
Sua vida, seu mal, seu alívio, sempre estiveram intimamente ligados aos números que aparecem sempre naqueles telões. Seus gritos, seus gestos sem sentido, aquela gravata apertada e o sempre possível derrame cerebral, o tornaram aquilo que acha que é hoje: apenas um homem normal. Mas a escuridão e a luz, sempre se abatem sobre as almas estáveis. E revelam que a verdade está além do que diz um sorriso satisfeito por algum dinheiro ou um corpo torturado após um tango dançado com o corpo errado.
Mateus volta à vida.
Respira incessantemente, custando a crer estar vivo, estando inerte por tanto tempo. Seu mundo e suas crenças, agora cabem no bolso de uma camisa, na forma de um cartão amarelo que diz: “Papai, estou com saudades...” Viver é assim mesmo, Mateus. Por um tanto de alívio, há que se mutilar os pedaços que mais pesam.
Mateus e Heitor enfim encontraram o sentido da morte. E esta diz que a vida é uma ópera bufa. Uma comédia de equívocos sinuosa e ultrajante. Por isso, cada beijo dado tem gosto de caco de vidro e vinho do porto. Por isso cada noite de amor mal dormida, tem cheiro de funeral.
Mas o que entendo eu, quando anjo, dessa infelicidade eterna e certa, que os homens arrastam com orgulho. Sinto até uma certa simpatia por esse dois, apesar de meu companheiro de viagem, que resolver sumir por um tempo, achar que perco muito tempo com eles.
Não importa....
Enquanto me afasto de todas as outras formas de dor e esperança, entendo o quão necessário é, às vezes, acreditar numa felicidade pasteurizada e embalada à vácuo. O que há para além disso? Se Heitor e Mateus soubessem o que seria o futuro, certamente não teriam trocado um sorriso no café da cidade. E eu já estaria longe, carregando a alma de um dos dois para o inferno. Aliás, este, um trabalho interessante. Faço pouco. Mas algumas almas me são designadas. E as atiro em profundezas impossíveis de serem percebidas pela mente humana. É nesse momento que vejo o fim do orgulho, a morte definitiva da esperança e uma solidão tão assustadora que seria desejável nunca haver a alma existido. Dante estava certo em muitas coisas....
Tempos verbais são um problema. Como conjugá-los em percepções temporais e espaciais simultâneas? São infinitas terras... E não fui eu quem as criou assim.
Eis novamente o sol, que surge agora sobre São Petersburgo, testemunhando mais uma vez o cansaço das minhas palavras. São milhares de anos assim.
Heitor abre a janela novamente. A luz ilumina os grãos de poeira, mas dessa vez, Mateus não percebe. Seu coração finalmente aceita o que é inevitável. Para ele, a chave abriu seu peito. Estava pronto pra ser um pouco mais que um biomecanoide. Mas como sou dado a ironias e figuras de linguagem excêntricas, acabo de enterrar um punhal no coração de Mateus. O amor liberta. O amor mata...
Não podendo mais nada fazer, Heitor apenas beija os lábios inertes. O coração de Mateus parou, no exato momento em que a felicidade entrou pela janela. De sua alma, prefiro não saber. Só entendo uma lágrima de densidade muito alta, que desaba face abaixo em Heitor. Há o funeral, há o tango dançado na noite anterior, e há a vida que continua. Inconvenientemente.