No rabo do fogão a lenha
Fez frio como talvez nunca fizera neste Norte de Minas. Temperaturas abaixo dos 10 graus Celsius são ocorrências raras por aqui, mas foram uma constante nas madrugadas de junho de 2010.
À noite, poucas pessoas se aventuvam a enfrentar a temperatura baixa das ruas. Preferiam o aconchego do lar, onde podiam tomar um caldo – que significa quente, da etimologia latina caldus -, uma dose de cachaça ou conhaque, ou mesmo um prosaico leite quente com achocolatado. Tudo é válido para se aquecer...
Como não gosto muito de ficar em casa, empacotei-me todo e fui à caça de um caldo. Encontrei-o no Skema Kente, onde pedi acompanhamento de vinho tinto e torradas. Deleite puro. Aquecido por dentro, voltei para minha casa, onde fecho janelas e ligo o vaporizador para aquecer e umidificar o ambiente do meu quarto.
Deito mais cedo, abro o livro de memórias que o Carlos Heitor Cony acaba de lançar, mas me rendo aos turbilhões de pensamentos que me assaltam nesta noite fria.
Como num rebobinar de fita, volto no tempo. Vejo-me menino, com meus seis anos de idade, de pijama de flanela, sentado no rabo do fogão a lenha. Tenho como assento uma lata de banha hidrogenada de caroço de algodão, da marca Saúde. As mãos pequenas estão espalmadas próximas ao fogo para melhor aquecê-las. Depois, passo-as no rosto gelado, transferindo calor. E assim fico por um bom tempo.
Ao meu lado, dois irmãos dividem comigo o mesmo espaço. Agem instintivamente da mesma forma, como num ritual ensaiado.
Meu avô, que mora na casa ao lado, vem prosear com meu pai, contando-lhe as novas que ouvira no Repórter Esso da madrugada em seu rádio a pilha.
Um irmão mais velho chega da padaria de Seu Duca com o pão quente. A garrafa de manteiga também ocupa um espaço no rabo do fogão, já que o frio a solidificara, necessitando do calor do fogo para se liquefazer novamente...
Minha mãe prepara o café da manhã. Em um armador de ferro, afixado em base de madeira, o grande coador de flanela deixa escorrer o líquido preto e saboroso, que é aparado por uma tigela esmaltada. Sinto o cheiro do café sendo coado. Dali, segue para os bules na grande mesa de pau-pereira branca, ladeada por um banco e de meia dúzia de cadeiras.
Meu pai toma a cabeceira. Meu avô, cego, já acendera o cigarro de palha, acariciando a chama do isqueiro, sem se queimar. Agora, apaga o pito, para tomar o café com o filho primogênito.
Os pães de sal são partidos ao meio. Sobre cada banda, uma generosa quantidade de manteiga derretida. O cheiro é indescritível.
Há quem prefira espetar um pedaço de queijo no garfo e tostá-lo ali na beira do fogo. Outros retiram a casca grossa do requeijão e a colocam sobre a trempe do fogão a lenha. Quando começa a amolecer com a ação do fogo, adicionam um pouco de açúcar por cima, transformando o que seria jogado fora em manjar dos deuses.
O cheiro e o sabor dessas guloseimas, das manhãs frias da minha infância, nem o tempo apaga. Talvez por isso, teimam em me revisitar a cada inverno sertanejo...