QUE NÃO ME DESMINTA O ESPELHO
 
 

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
(Fernando Pessoa)
 


Não, não foi um adeus desses que acontecem na beira de um cais, com sol se pondo, gaivotas regressando e um ser partindo. Foi um adeus pensado entre quatro paredes,  um adeus diferente, sem testemunhas. Um adeus a uma parte de mim, a que “delira” , dando lugar a que “ pesa e “pondera”. Para que eu possa  sem “estranheza” ou “solidão”  ressurgir e conviver com  os meus sentimentos, sem direcioná-los ou deles outros querer convencer. Que haja em mim firmeza de propósitos  e que não me desminta o espelho, que já não reflete olhares perdidos, sorrisos não contidos, não enigmáticos, não Mona Lisa. Apenas o que sou/ estou/ agora.


Em consonância com os versos de Fernando Pessoa, que venha Ferreira Gullar com o seu “Traduzir-se”



Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
 
Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 08/07/2010
Reeditado em 08/07/2010
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