Manca e ladra

Ficava na altura do número mil quinhentos e qualquer coisa. Tinha o letreiro em néon rosa e verde, chamava-se Biombo’s Night Club. Na Porta o segurança, um negro magro de 1,80mts, se achegou ao meu lado num tom que mesclava intimidação e camadaragem.

-Aê parceiro, bucetada na cara, bora lá irmão, bucetada na cara. Tem loira, tem morena, ruiva, gosta de ruiva la rubia (imitava um espanhol que não faço idéia de onde veio). Entra irmão vai, 40 conto 4 cerveja, entra.

Era uma noite de quarta-feira e eu estava com o saco cheio dos moralismos alheios e dos retardados alienados que me circundam todos os dias. Que outro compromisso eu tinha? Por quê não? E uma cerveja cairia muito bem.

O lugar era escuro e tocava algum lixo da moda das rádios jovens, que ignoro quem tocava ou cantava, pra mim todos eles soltam grunhidos. Uma garota loira que devia ter seus 22 anos rebolava desajeitada num mastro cromado que parecia ganhar mais brilho a cada dia de expediente, tinha belos seios, medianos, quadril largo e um belo rosto. Logo mais adiante a cena se repetia, agora com uma morena

Sentei-me ao balcão e ali fiquei a observar aquelas cenas que mesmo sendo tão conhecidas minhas ainda eram dignas de admiração. Os homens em pequenos grupos envoltos na névoa densa do cigarro, riam alto, urravam, rasgando-se, bêbados e febris. Ri-me quando lembrei-me do amigo que me disse uma vez que aquela era a casa de sinceridade, pois os homens e as mulheres que ali estavam já sabiam o que esperar e o que queriam um do outro, com clareza e sem falsos moralismos. Voltei-me para o balcão e me deparei com uma figura inusitada de cabelos crespos implorando há alguns meses por uma nova tintura para substituir a estranha coloração manchada, que agora habitava ali.

Chama-se Valeska (ao menos foi o que me disse). Paguei-lhe um bombeirinho e pus-me a passar a mão em suas coxas e falar-lhe algumas obscenidades. Ela era puro riso, não era bela, definitivamente, mas tinha sua graça. Ria alto e estridente, a mostrar o canino direito encavalado e algumas obturações ao fundo deixando o quadro ainda mais interessante.

Pedi mais uma cerveja, logo a grotesca dobra de sua barriga desaparecia na sua vulgar blusa amarela de decote abusivo que mostrava, sem nenhum pudor, a flacidez de seus seios.

- Você não quer sair daqui? – perguntou-me. Eu, sem pestanejar, peguei minha bolsa, outra cerveja e levantei.

- Demorou.

Saímos dali e fomos para algum pulgueiro de 15 reais a noite que ficava na redondeza. Lembro-me apenas do nome em néon barato azul e vermelho, onde lia-se LivStar, por algum motivo achei o nome cômico. Ao entrar vi que ela era conhecida do lugar, tanto que se quer pediram documento para identificação dela, apenas o meu. O número do quarto era sugestivo “69”. Passamos por um corredor pútrido que cheirava a algo que não identifiquei misturado a cigarro. Misterioso foi como somente nos dois passos que ela deu na minha frente, ao entrar no quarto, é que pude notar que a pobre moça mancava. Por algum motivo ela tinha uma perna mais curta que outra.

Não o foi o melhor sexo da minha vida, definitivamente, mas fiquei surpreso com a desenvoltura da criatura. Cavalgava com força e gemia de uma maneira que eu classificaria como convincente. Ela fingiu gozar, eu de fato gozei. Outra cerveja, outro cigarro, outra cerveja e outra. Ela adormeceu. Inusitado foi, normalmente levantam-se e se vão, eu fiquei ali por alguns minutos ainda a observar no espelho do teto, minha mediocridade, “como pude sentir prazer com esse rabisco do inferno?” pensava. Mas logo em seguida senti pena dela, parece que nós homens ficamos mais sentimentais depois de um orgasmo. Pensei no que se passava na cabeça de uma mulher daquelas, quis mergulhar fundo no que poderia estar por detrás daqueles dentes amarelos e aquele mancar.

Por esses tempos eu relia O Alienista, e recomeçava meu interesse por patologias psicológicas. E de repente eu era Simão Bacamarte, eu tratava Valeska num divã no qual ela derramava toda sua infância, de como havia ocorrido o atropelamento atroz que mudara sua vida para sempre, deixando-a manca e de como se tornara prostituta suburbana da cruel capital. Por fim acordei.

A vida lá fora urgia. Na cama apenas eu. Pensei por um instante que ela poderia estar tomando banho, mas não havia qualquer barulho. Ela havia ido embora e eu estava aliviado, não queria ter de lidar com ela sóbrio. Sentei-me na cama ainda um pouco ébrio de sono e pensei em dar uma leve folheada em algumas páginas enquanto fumava o ultimo cigarro, mas minha mochila não estava. Nem carteira, nem celular e nem Valeska. Aquela criatura além de não ter sido abençoada pela divindade, também não o fora pela ética. Fiquei sem dinheiro sem qualquer outro documento que não o RG que estava em poder da recepção, e ainda por cima no final das contas o que mais me incomodava era a pergunta “como vou pagar o quarto?”. Algo tinha de ser feito, e naquele momento e sem demora. Como meu pai sempre me dizia, sofrer antes é sofrer duas vezes, eu não podia ficar ali ruminando minha desgraça.

Pus-me decidido a acertar aquela situação. O que eu faria e como faria pouco importava, o fato é que a cada minuto que se passava eu ficava mais endividado naquele quarto podre. Desci as escadas olhei firme nos olhos da recepcionista e entreguei a chave do quarto esperando que ela me dissesse quanto havia custado a brincadeira. A jovem pegou a chave e não voltou a me dirigir uma só palavra. Após alguns segundo ela resolveu se incomodar com minha presença.

- Mais alguma coisa senhor – com aquele tom robótico das recepcionistas.

- Tá tudo certo, eu não tinha que pagar?

- Não, a moça que veio com o senhor já pagou tudo.

- Ela deixou algum recado, um telefone, alguma coisa?

- Não senhor.

- Obrigado.

Amável. Goza comigo, rouba-me, mas paga o motel, simplesmente amável. Além de tudo me rendeu um dia de folga do serviço para correr atrás dos documentos que perdi filas e mais filas, em virtude de uma noite em que fiz uma puta manca, flácida e ladra gozar. É vida, mais uma noite paulistana. Saí na rua, observei o movimento dos carros, acedi um cigarro e pensei “vejamos o que vou ler agora?”.