Requien Aeternum (parte 2)

Mariana morreu de maneira estúpida.

Eu e meu companheiro de viagem, flutuamos sobre o corpo estendido, e ainda me surpreendo com as possibilidades de torção do corpo humano. Pedaços de ossos expostos nem de longe denunciam o que foi a antiga beleza de um corpo aceitável esteticamente. O rosto desfigurado por cortes profundos, causava um certo desconforto até mesmo em nós. As coisas foram criadas para estarem em seu lugar.

Uma lástima ter que sepultar um corpo tão esplendidamente criado do acaso. E entre todos os elementos de um funeral com caixão lacrado, reconheço meu alter-ego, com uma flor amarela na mão, a barba por fazer e um olhar de quem decidiu chorar apenas o necessário. Nem mais nem menos. Ele se aproxima, fala qualquer coisa indecifrável, joga a flor no túmulo e vai embora, decidido que a morte não respeita amor ou vício nobre.

“Faça arder o meu coração”. Noite em que as lágrimas se derramam de maneira desorganizada, noite de ira...

De suas mãos eu retiro a chave que liberta o coração de Mateus para o que é mais verdadeiro na vida. Heitor é resignado, pois uma vez preso ao que lhe torna livre, só pode lamentar o dia em que resolveram dançar juntos pela primeira vez. Daqui para frente ainda há muito o que fazer. Mas para Mariana, o tempo acabou.

Eu e meu companheiro retornamos mais uma vez ao ponto em que as horas se encerraram para ela. Porque a vida tem de continuar, há pessoas lavando o sangue da calçada, outros retirando pedaços de vidro. Ninguém construirá um monumento para ela. E eu queria mais tempo para entendê-la. Para saber o por quê dos saltos altos, que causavam dor ao andar e da expressão de satisfação eterna, mesmo sabendo que não poderia consertar um viciado em heroína.

Faz tempo que não vou para o céu. Lá as coisas são imutáveis. São a resposta para os meus próprios argumentos. Mas aqui, talvez seja mais caótico que o próprio inferno.

O oitavo imperador me perguntou certa vez se eu já havia visto justiça nessa terra. Eu respondi que sim, mesmo não tendo grandes exemplos para mostrar. Mas o que vejo hoje quando vasculho o coração daqueles a quem persigo, é que justiça é uma palavra sem sentido. Vejo apenas desconhecimento da própria fraqueza. Por isso, é possível que seja justo para Mateus abandonar uma casa amarela em busca de vida. Mas e os fantasmas que nela habitam agora? Por que foram arrastados para lá?

Creio que como cronista da vida alheia, sou um anjo burocrata. Onde faltam qualidades, eu anexo muletas e asas falsas. Ateio fogo onde o amor é apenas irremediável. O que muito enfurece meu companheiro celeste, que diz ser este um mundo de lacunas e seres perdidos. E que assim deveriam ser descritos.

Mas não posso me conter, como quando Mariana entrou na catedral, não para cortar os pulsos, mas para me contar uma história, enquanto eu, disfarçado de escultura de barro,buscava respostas para o tédio de ser anjo.

Ela dizia que sua dor de ser só a prendia a qualquer coisa que se movesse e lhe direcionasse a dependência. Então pedia a vida e a cura para meu alter-ego machucado e assassino.

É justamente nessa cena que desapareço, para observar o amor que nasce num café em algum lugar da cidade.

Vidas trocadas. ..

Os vermes devem começar engolir o corpo de Mariana em breve. De sua alma não me aproximo. Meu trabalho é com aqueles que se arrastam pela terra. Sou o perseguidor da criação. E mesmo que não tenha grandes simpatias pelos homens, não deixo de ficar intrigado quando eles revelam algo da herança divina.

É nesse dia em que nasce do outro lado da cidade, o filho de Alice e Nicolai. Este irá se chamar Fausto. Mesmo que os nomes não signifiquem nada. Nesse momento, a alegria que vejo nos olhos de Nicolai é tão insuportavelmente verdadeira, que quase o perdôo por suas traições e por sua covardia. Alice parece certa de um destino melhor para seu filho. Melhor que o de Mariana. ..

Meu companheiro parece estar também se contaminando pela aspereza desse mundo. Ele me diz: “Não é para se sentir orgulhoso?”. Eu não sei exatamente o que ele quer dizer. Mas sei que confio nele. E as suas asas cobrem agora os céus. Mas ele voltará. Ele sempre volta.