Uma Elegia a Dashiell Hammett
Uma Elegia a Dashiell Hammett
Com o advento da internet as ferramentas colocadas em nossas mãos, tratando-se de interação pessoal, ficaram muito mais contundentes e velozes. A eficácia proporcionada pela internet coloca-nos diante de várias questões: dentre elas, a que mais chama a atenção é o despreparo da maioria para lidar com o imenso leque de opções que a internet abre para todos nós. Há alguns anos, bem poucos, se nos sentíamos sozinhos, íamos a um barzinho procurar interagir com mais gente, ou então – recuando-nos um pouco ainda mais no tempo – à pracinha, participar do footing, esperando a nossa cara metade aparecer do lado contrário da fila, (que desfilava em sentido contrário ao nosso) trocar um sorriso medroso e iniciar a paquera. O sentimento de solidão que sentíamos não se alterou; continua pressionando nossos corações e mentes. Nas pracinhas, ainda há footing, se bem que esparsamente, os barzinhos ficam cheios de gente querendo (e procurando) companhia, e a solidão, essa madrasta cruel, só parece se agigantar dentro de nós. Mas, antes de ir a um desses lugares, quem se sente só vai para uma sala de bate-papo, ou busca, entre seus contatos, alguém que preencha o vazio que lhe perpassa a alma. Grandes paixões inundam o imenso oceano da net, alimentadas pela carência e, mais ainda, pela capacidade que a nossa mente tem de fantasiar, de criar mitos instantaneamente. Ao vermos uma foto atraente, ou um perfil que avaliamos como interessante, podemos rapidamente transformar um sapo em príncipe (valendo o mesmo também para sapas...!), no mais das vezes sem nem mesmo tido a oportunidade de beijá-lo fisicamente, um beijo de verdade, real.
Dashiell Hammett, o escritor acima citado, buscava o seu material, aquele do qual tirava temas para seus escritos, indo diretamente a fonte: o bas-fond, o underground, misturando-se com os elementos mais soturnos da noite, foras-da-lei e prostitutas. Senti-me na pele do próprio escritor americano de romances noir, quando, pela primeira vez, entrei em um bordel, uma casa de mulher-dama, daquelas que ostentavam uma luz vermelha na porta como indicativo da especificidade do que ali se passava. Eu era ainda pouco mais que um menino, (tinha por volta de catorze anos)e todo aquele mundo de mistério se descortinou diante de meus olhos atentos– era a casa de Belice, a comandante das meninas que davam prazer proibido aos homens de Gongogi. Meu olhar curioso percorreu a fileira de quartos, a disposição das camas, e os gestos nervosos de Belice, supervisionando tudo, para que à noite, nada estivesse fora de lugar. Eu sabia que meu avô (delegado à época) era um dos clientes da casa, o que só acrescentava mais curiosidade a minha exploração. Bem mais tarde, já adulto, este saber deixou-me um gosto amargo, na boca e na mente, quando ouvi a fala de uma das meninas de Belice, deitada ao meu lado na cama depois do sexo: “-Você é neto do Raimundo Sapateiro?” Carreguei as implicações dessa interrogação (como se um crime de incesto eu tivesse cometido) por um bom período de minha vida, até conseguir lidar tranquilamente com o peso que a mesma me acarretava.
As camas das meninas de Belice, o underground de Dashiell Hammett, acrescido das pracinhas de footing das cidadezinhas do interior, barzinhos inclusos, tornam-se materiais preciosos, consistentes, reais, nas mãos de quem faz da vida - através de crônicas, livros e outras formas de expressão - uma imensa sala de artesanato intelectual.
Ensaio escrito após uma de muitas reflexões sobre a maneira com que este sertanejo se atira de cabeça, mergulhando fundo em suas relações pessoais - como fazia, literalmente, pulando entre as pedras cheias de perigo, nas corredeiras do rio Gongogi.
Vale do Paraíba, um domingo cheio de sol e calor de Outubro de 2008
João Bosco