A vida de cada dia
A VIDA DE CADA DIA
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 07.07.2010)
O sábado amanheceu esplendoroso e ensolarado, indiferente a tudo que tivesse acontecido na véspera: mais um espasmo errático da Bolsa de Valores, a morte súbita de uma amiga próxima que mora distante, meia dúzia de jovens assassinados na Ilha por questões implacáveis relacionadas ao consumo, venda ou controle de drogas, um devedor confesso que persiste na negativa de pagar, uma obscura deputada ficha-suja de Goiás colocada ao abrigo dos rigores da Lei da Ficha Limpa pelo próprio Supremo Tribunal Federal, que a liberou para concorrer às próximas eleições mesmo tendo nas costas condenação de órgão judiciário colegiado, a derrota de um time de futebol, ainda que fosse uma seleção nacional, ainda que fosse a Seleção brasileira, ainda que fosse na Copa do Mundo, ainda que fosse em partida eliminatória.
Indiferente a tudo isso e a muito, muitíssimo mais, a vida explodia no sábado de clima ameno neste início de inverno. Tocado pela luminosidade do dia, Manoel Osório aproveitou o momento para caminhar pelo bairro e adjacências, sorvendo pelas narinas dilatadas o ar fresco da manhã e imaginando alamedas, praças, bulevares, parques, lagos, jardins, árvores antigas e frondosas, garças, jacarés e tartarugas que poderiam existir. Cruzava com gente sorridente, é verdade.
Das sacadas, dos prédios, das casas e dos carros começavam a rarear, aos poucos, as bandeiras e as cores do Brasil. Algumas dessas pessoas que se saturam de verde e amarelo, conjeturou Manoel Osório enquanto pensava na vida - e, no entanto, pensava de tal forma alto que pôde ser ouvido distintamente por quem andava perto de si -, alguns desses são os primeiros a se despir das cores ao menor e mais insignificante revés como se as demais equipes não pudessem jamais passar de meros coadjuvantes, de plateia convocada para aplaudir e admirar a nossa seleção. Esses, prosseguia Manoel Osório, menos do que lutar por um país cada vez melhor - e país, aqui, é o Estado, a cidade, o bairro, a calçada que se pisa -, não passam de torcedores de um time que, pelas leis do esporte, vai ganhar e também vai perder, sem que isso devesse afetar de qualquer modo a vida das pessoas em geral.
O sábado, porém, concluiu Manoel Osório, é tão agradável como esta quarta-feira e como cada dia que temos ainda pela frente, com coisas interessantes a fazer e encontros agradáveis a celebrar.
(Amilcar Neves é escritor com sete livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 32 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior)