As reticências...
Recentemente eu tenho sido tomado por uma vontade incontrolável de escrever. Eu tenho escrito em capas de CD's, em guardanapos e em qualquer outra superfície que se apresente como uma boa tela disponível e aconchegante para as palavras. Logicamente, muitas dessas palavras se perdem. Algumas por não apresentarem um contexto aceitável, outras por entrarem e saírem da minha mente mais rápido do que eu consigo colocá-las no papel. E a minha mente tem se mostrado uma antagonista fortíssima nesse meu rito de escrever. Minha memória, que outrora fora meu maior motivo de orgulho, hoje em dia já não parece funcionar devidamente. Histórias que eu crio durante uma tarde inteira se apagam do meu pensamento com a velocidade de uma bala, sem que eu tenha chance de registrá-la em qualquer lugar. E quando eu consigo, de fato, sentar em frente ao computador para colocar as ideias no monitor, nenhuma delas me parece ter restado. Soa até meio irônico. Mas ainda assim, existem dias, como hoje, em que eu consigo segurá-las pela cauda e trazê-las até aqui.
E o paradoxal é que, ontem eu sentei aqui, frente a frente com o computador e não consegui escrever sequer uma frase. E hoje, cá estou eu novamente e me vejo preparado para escrever não só um, mas três textos diferentes. As coisas se acumularam de uma maneira tal que, nesse momento, eu luto fervorosamente com os poros da minha memória, tentando impedí-los de escoarem as minhas não raras, porém efêmeras ideias.
Neste momento consigo pensar em três assuntos sobre os quais gostaria de falar: O poder purificador das palavras, o indivíduo que eu vejo quando encaro o espelho e as reticências. E, como o título lhes sugere, eu acabei por escolher primeiramente os famigerados três pontinhos. É uma história mais leve, mais tranquila e que me traz uma boa recordação. Talvez a mais tenra de todas e, por que não dizer, a mais bela que alguém pode guardar em seu interior: o primeiro amor.
Pois bem, neste instante você se pergunta: "Qual a relação das reticências com o primeiro amor deste rapazinho confuso?"
Bem, posso afirmar-lhes que a história não é nada convencional, mas ainda assim, apresenta lá suas qualidades.
A inconclusividade das reticências se apresentou para mim ao final de 2005, o ano em que a minha vida sofreu talvez a maior guinada pela qual já passei desde que cheguei a este mundo.
Desde a minha estréia nas atividades escolares, eu sempre frequentei o mesmo colégio. E a turma com quem estudei até o final do ensino fundamental, ou seja, por longos 9 anos, permanecia sempre a mesma. Você consegue imaginar o quão unida era a nossa turma, certo? Ali dentro eu tinha alguns dos amigos que trago até hoje comigo, amizades importantes e que se firmaram profundamente na minha vida. Naquele ambiente eu criei a minha personalidade e me desenvolvi como pessoa. E foi no final do ensino fundamental que eu vi esse mundo seguro ser estraçalhado e reconstruído de modo completamente diferente, quando, minha mãe, afim de me afastar de um colégio, nas palavras dela, "repleto de maus exemplos", me transferiu para uma escola de alunos mais "abastados", por assim dizer.
Cabe aqui discorrer acerca das condições da minha antiga escola e da nova, para a qual fui transferido. A primeira era uma escola de um bairro pobre, onde tanto os alunos quanto os professores, em sua maioria, viviam uma vida simples. Eu era uma das poucas exceções, mas ainda assim, me via perfeitamente bem colocado naquele ambiente. Eu nunca fui um rapaz que ligasse muito para os bens materiais. Não vou ser hipócrita aqui e dizer que nunca liguei em absoluto para essas coisas. Meus pais bem sabem o quanto eu enchi as suas respectivas paciências quando encasquetava com alguma vontade absurda de ter um novo vídeo-game, ou algum computador ou coisa do gênero. Eu tinha desses deslizes, mas na maioria do tempo, eu não me dava muito com esse lado da vida.
Quando eu mudei de colégio, fui apresentado a uma sociedade completamente diferente. Um grupo que considerava de suma importância a sua condição financeira, a sua aparência e o seu nível de "descolamento", por assim dizer. E aí, aos 15 anos, com a mente ainda por se formar e uma ideia de mundo completamente diferente, eu fui apresentado à rejeição.
No meu tempo, o nome disso ainda era rejeição. E ainda era visto como simples implicância. O "bullying" só viria a ser criado tempos depois de eu tê-lo encontrado. Talvez, se fosse um tema abordado constantemente na minha época, eu não tivesse sofrido o que sofri. Ou talvez tivesse, não há como saber.
O que eu sei é que, naquela época, eu era menosprezado pela totalidade da minha turma e tratado como um lixo. Menos que isso, às vezes. Não é preciso dizer o quanto isso me abalou, certo? Eu vinha de um ambiente totalmente favorável, onde eu conhecia todas as pessoas, onde todos me aceitavam, onde tudo era um mar de rosas. E então, sem que eu pudesse me preparar, eu fui lançado em um lugar estranho, com pessoas me castigando a todo o momento e sem que eu tivesse sequer um amigo, um serzinho ínfimo e insignificante que fosse, em quem me apoiar.
Nesta época, eu me fechei. Por completo. Hoje eu entendo e consigo mensurar o tamanho do ódio que eu sentia pela vida naqueles dias. E às vezes me pego pensando sobre o que teria acontecido comigo se eu não tivesse encontrado a garota das reticências...
Até aqui, a história não apresenta nada de anormal, suponho. Bullying é uma realidade para muitas pessoas, por mais assustador que possa parecer. Mas ainda assim, é algo comum. Pois bem, a parte estranha começa agora. Começa na maneira como eu encontrei a garota das reticências e na forma como as nossas histórias se desenrolaram, enrolaram e então, desenrolaram de novo.
Como é de se imaginar, quanto maior o meu ódio pelo mundo, maior a minha vontade de me isolar dele. E à época, na minha cabeça, o único lugar onde eu poderia fugir da minha realidade era na internet. Primeiro foram os jogos, depois os sites de relacionamento e, por fim, o que hoje em dia é considerado o fundo do poço, as salas de bate papo. A ideia hoje me soa ridícula. Me ocultar sob um pseudônimo e sair por aí conhecendo pessoas também ocultas pelo manto do anonimato, como se isso fosse uma coisa tremendamente natural e segura. Hoje pode até ser. Na minha época, era estranho. Perigoso, por assim dizer. Eu mantinha aquela vida paralela em segredo, pois tinha uma certa vergonha. Hoje em dia eu sei que essa moda de se conhecer pela internet já existe há bastante tempo. Mas em 2005, com 15 anos, eu ainda não sabia disso. Para mim, aquele gesto de conversar com desconhecidos era ligeiramente perigoso. E era só no que eu, tomado pelo meu ódio, conseguia pensar.
Mas então, voltando a garota inconclusiva. Era uma tarde mormacenta e eufórica de sábado, me lembro muito bem. Dia 25 de Novembro de 2005. Para quem é gaúcho e entende um pouco de futebol, sabe que nesta data ocorreu a "Batalha dos Aflitos", uma partida histórica em que o Grêmio, clube para o qual eu torço, venceu um jogo depois de ter 4 jogadores expulsos e dois pênaltis contra si. Pois foi exatamente nesta tarde em que eu, matando um pouco de tempo até o jogo começar, entrei em uma das salas de bate papo e conheci uma garota que por ali se encontrava. Ela era engraçada, inteligente, ligeiramente tímida, ou o quão tímida uma pessoa pode aparentar ser pela internet e, para o meu grande contentamento, ela parecia tremendamente deslocada naquela sala de bate papo. Para mim isso era uma boa coisa, visto que eu considerava todas as pessoas que ali se encontravam como criaturas sem a menor graça. Todos com as suas conversas pré-programadas, suas ânsias idiotas. Essas coisas todas que me desanimavam mas, ainda assim, não me demoviam da vontade de frequentar a sala.
Depois de conversar por um bom tempo com a garota, nós decidimos trocar e-mails e continuar a conversar por um programa de mensagens instantâneas, por ser mais prático. A primeira coisa que eu notei nela e que, logo depois se tornaria o maior traço que eu herdaria da experiência toda, era o seu uso contínuo das reticências. Ela fora a primeira pessoa que eu vira escrevendo na internet que usava pontuação. Aquilo era assombroso. Me fazia sentir ligeiramente envergonhado, visto que, à época, eu não era nem de perto um exímio escritor. Ela, porém, era. Ah, como ela escrevia bem. Talvez fosse só o meu entusiasmo exacerbado me pregando uma peça, não sei dizer ao certo. Mas desde o primeiro momento em que troquei mensagens com aquela garota, eu fiquei fascinado pela forma como ela escrevia. Ela usava não só a pontuação, como as próprias palavras para dar vida as frases que escrevia. Mais do que simplesmente entender o significado, eu conseguia sentir o que ela sentia enquanto escrevia. Ela transmitia a sua hesitação, sua euforia, seus medos, angústias. Tudo em palavras. Era lindo. Era apaixonante. E me cativou.
Estúpido, eu sei. Mas eu me apaixonei pelas reticências...
O papel mais importante que ela exerceu na minha vida foi o de preencher o vázio que tinha ficado da época em que eu me sentia aceito por todos. Enquanto conversando com ela, eu voltava a me sentir bem ambientado. E em determinado momento, essa sensação se tornou tão boa que passou a transcender os sentimentos negativos que eu acumulava na escola. Por causa da garota das reticências, eu já não me importava em ser um excluído. Mais do que isso, ela me fez perceber o quão insignificantes eram as pessoas que me maltratavam no colégio. O quão desnecessárias elas eram na minha vida.
Obviamente, toda essa ajuda não me passaria despercebida. Foi inevitável que eu, por maior bobagem que me parecesse gostar de alguém que eu nunca havia visto, acabasse por me apaixonar por ela. E o interessante foi que, apesar de eu ainda não entender como, o sentimento era recíproco. Ela também gostava de mim. Ela me disse isso na madrugada de 1 de Janeiro de 2006. Sim, pouco mais de um mês depois de termos nos conhecido. Parece pouco, não é? Pois eu lhes digo que não. Paixão não precisa de tempo pra crescer, nem de espaço pra desabrochar. Amizade leva meses, confiança leva anos, amor leva décadas, mas a paixão é imediata. Ela pode não durar muito, ser passageira, evasiva e traiçoeira. Mas uma coisa ela não é: preguiçosa. Quando ela vê uma possibilidade de criar um laço, um afeto, uma ínfima confusão que seja, ela o faz. Paixão não precisa de razão, não tem limite e, sem sombra de dúvidas, não aceita explicações. Paixão não se entende, mal se percebe, apenas se sente...
Pois como que para comprovar o quão frágil é a paixão, a nossa história terminou assim como começou. Era uma paixão de crianças, um sentimento pueril, sem compromisso, sem necessidades. Ele só queria ser sentido, para então poder seguir o seu caminho. E foi o que aconteceu. Ela seguiu o dela, eu segui o meu. Hoje em dia, mal nos falamos. Eu lhe mandei um alô no final do ano passado, mas ainda assim, nada que altere a minha vida ou a dela. Engraçado como a coisa toda terminou como começou. Numa tarde fria do inverno, ela me chamou e disse que acha difícil que nós viessemos a namorar. Eu, não sei por que, concordei com os seus argumentos e ponto. A coisa acabou assim. Desta vez, sem reticências.
Mas por mais que ela já tenha se distanciado da minha vida, ainda hoje, eu a trago comigo. Pois foi dela que eu herdei a necessidade de expressar sentimento nas palavras. Ela me mostrou muito mais do que um mundo onde o meu ódio era desnecessário. Ela me mostrou um mundo onde as palavras sentem, onde elas sorriem, onde elas choram, onde fazem muito mais do que simplesmente transmitirem mensagens. E até hoje, cinco anos depois, eu ainda mantenho o maior traço que ficou em mim, como prova da passagem dela em minha vida. A inconclusividade das minhas frases e, mais importante, a certeza de que nem sempre as coisas ruins são absolutas. Sempre existe algo de bom no momento em que vivemos, por pior que possa parecer. As coisas não são em sua totalidade ruins. Às vezes, nós só não estamos procurando no lugar certo. Basta ter paciência e acreditar. As coisas acabam por melhorar...
E quanto a garota das reticências, por mais improvável que me pareça, às vezes eu ainda lembro dela e desejo, em silêncio e fingindo que não anseio por isso, que o que se encontra na última linha da nossa história não seja um ponto final...