Ironia

Ironia

Olhou para os lados e sentou-se no degrau de entrada do prédio. Por algum tempo nada passou por sua cabeça. Estava cansado. Apenas olhava as pessoas passando rumo à praia.

O dia estava lindo. Ameaçou levantar-se e ir para o escritório, mas uma súbita ideia o prendeu ali. Tirou a gravata, desabotoou o colarinho, os punhos e dobrou as mangas da camisa. Surpreende-se com sua atitude e esboçou um sorriso. Tirou os sapatos, as meias e deixou que seus pés aproveitassem o calor da calçada.

Que aventura! Não iria trabalhar. Resolvera naquele momento. Passearia pela praia. Aproveitaria aquele dia magnífico.

Levantou-se como os sanduíches e os sapatos nas mãos e pôs-se a caminhar rumo à areia fina.

Observava o colorido das toalhas estendidas no chão. Ainda era cedo, mais tarde o branco estaria totalmente desaparecido. A praia, naquele dia era um convite irrecusável.

Crianças corriam e as mães gritavam alertando-as para os perigos das ondas que quebravam espumantes nas rochas.

Samuel pensava – por que não tinham filhos? Já estavam casados há quase dez anos...

Ao longe, na imensidão azul do mar, os barcos despontava, trazendo peixes e turistas.

Absorto em suas observações e pensamentos rumava para as rochas. Dobrou a barra da calça e entrou até as canelas dentro da água. Era relaxante, muito gostoso sentir a areia molhada e aquelas conchinhas que espetavam os pés.

A grande imagem do Cristo, vista de longe, parecia abençoar aquele dia em que ele, finalmente, criara coragem para mudar. Sentia-se vivo e grato a Deus.

Percebeu que poderia fazer outras coisas. O escritório que esperasse! Já trabalhava de segunda a sábado e, agora, aos domingos também...

O patrão era seu amigo, o salário era bom, mas nunca desfrutara o prazer de realizar seu sonho de viajar para outras cidades. O escritório sempre esteve em primeiro lugar, era seu ganha-pão. Passear era um luxo e quando aposentasse teria tempo sobrando para visitar muitos lugares, até mesmo aqueles chatos museus que eram a paixão de sua esposa. Ele ao entendia como alguém, podia gostar de tantas coisas velhas...

Deu razão à sua esposa por não mostrar-se entusiasmada. Realmente a vida deles era totalmente previsível. Ele saía para trabalhar, ela ainda estava dormindo. Chegava no final do dia e a encontrava sentada no sofá da sala diante da televisão que não exercia nenhum efeito sobre ela. Dava-lhe um beijo na testa e ou oi. Ela respondia, levantava e dirigia-se para a cozinha. Esquentava a janta. Jantavam em silêncio e ele falava alguma coisa sobre o dia no escritório. Ela falava de sua rotina com a arrumação e limpeza da casa e que estava muito cansada. Então, os dois concordavam que o melhor era ir dormir, pois o dia seguinte também seria cansativo...

De repente, bateu-lhe um peso no coração. Ela estava em casa e ele ali aproveitando das maravilhas da praia. Resolveu voltar.

Entrou no carro com a calça molhada, jogou os sapatos no banco de trás e foi para casa.

No caminho comprou um buquê de rosas amarelas, as preferidas de sua esposa. Planejava fazer-lhe uma surpresa: almoçariam fora, tomariam um banho de mar, consumiriam todas as guloseimas que ofereciam à beira mar e, à noite voltariam para casa. Relaxariam com um belo banho na banheira, tão desejada por eles, mas que ainda não fora inaugurada, beberiam champanhe e dançariam ao som daquelas músicas lindas dos tempos de namoro. Nunca mais, prometia a si mesmo, trabalharia aos domingos.

Chegou. Com o coração acelerado, subiu a escada pulando os degraus. Parecia um menino travesso. Sentiu vontade de assobiar, mas estragaria a surpresa.

Abriu a porta e sem fazer barulho entrou procurando Poe ela. Imaginava os belos olhos verdes mudando de tonalidade, efeito da emoção. Ela ficava mais bonita ainda.

Rumou para o quarto. Ficou parado na porta admirando o belo corpo semi-envolto nos lençóis azuis. Pensou no quanto aquela mulher o fazia feliz. Ele não sabia demonstrar toda a gratidão e amor que sentia por ela. Mas nunca é tarde. Ela saberia agora.

Olhou o relógio no pulso. Duas horas!

_ Ei, dorminhoca, já passou da hora de levantar!

Aproximou-se da cama com um sorriso e as rosas nas mãos, mas eu sorriso murchou ao ver as manchas de sangue no lençol. Os pulsos cortados.

(Este texto faz parte da Antologia Enigmas do Amor – Editora Scortecci – 2009)