Requien Aeternum (Parte 1)

Acordar. Um intrigante verbo. Diz mais do que parece.

A luz atravessa a cortina, e captura os grãos de poeira. Brilham. Mateus acorda. Seus olhos perseguem familiaridades. Nada. Paredes diferentes. Não amarelas.

Heitor acorda. De maneira justaposta. Um tango. De dois corpos iguais. Desenvolvidos no espaço. Numa noite anterior.

A dança entrecortada por notas musicais tão caóticas fez o mundo da noite anterior parecer menos amargo e menos monstruoso, porque pela primeira vez na vida Mateus foi menos autômato e mais elemento orgânico, independente dos vícios da casa amarela, do sufocante ar da sala de jantar com uma cristaleira antiga e da espera angustiante até que o borrão ao seu lado adormecesse e por um minuto, pelo menos, pensasse em um anjo salvador que o arrebatasse dalí e o levasse para algum lugar onde não existissem mais necessidades de harmonia forçada e convenções para enquadrar o que é certo num quadro de família com mãe infeliz, filhos cretinos e marido medíocre, que soterra seus sonhos e seus desejos na vala comum chamada vergonha.

O oitavo imperador paira. Tenta encontrar respostas, onde vê apenas ação mecânica. Sua imprecisão é o que difere os homens dos anjos. Não precisamos provar que existimos.

Outro lugar. Heitor, furioso, faz perguntas. Para si mesmo. Perplexo. Os lençóis, acusadores.

Mateus. Acordado. Seus olhos ainda contemplando. A poeira. Como homens. Sobre a terra. Calmo.

Heitor furioso é como fogo. Imprevisível. Mas abaixo da superfície. Apenas no coração.

Mateus enfim vê. É o outro dia. Ainda primavera. Com fumaça. Com barulho.

Diante das escolhas, somos forçados a crer que tudo é possível. Não é. Apenas o imprescindível. Como aquele beijo dado, e aquele encontro de dois corpos. Estava escrito. Não se poderia fazer nada. Mas e o que fazer depois? Foi fácil chegar até aqui. E de agora em diante?

O oitavo imperador espera uma observação minha. Espera que eu dê respostas para os dois corpos espelhados. Mas não tenho. Não até amanhã, pelo menos. Ele tem uma das mãos a chave e na outra o estilete. Qual dos dois elementos ele usaria, para abrir o peito onde encerro alguma esperança?

Um som de violoncelo agora cruza os céus, como a pedra atirada por alguma criança, em direção à vidraça. Nicolai mata o cisne de Saint-Säens pela enésima vez, porque muita gente acha bonito matar cisnes. Ainda mais se este é uma jovem que escolheu passar a vida na posição pouco natural que é o ballet.

A música vai de encontro aos ouvidos de Heitor e Mateus, que não tendo o que dizer para justificar as tramóias do tempo, se conformam em observar um ao outro. E à medida que o cisne agoniza, termina também meu senso de responsabilidade.

Agora o canto de Alice. Será que nesse momento, todos resolveram fazer arte?

Mariana atravessa a rua agora. Uma rua de São Petesburgo, contaminada pelo cheiro de peixe, Chanel número 5 e música de procedência duvidosa. Certamente, após sair da catedral, acreditava que o dia seria diferente. Menos ultrajante. E foi. Atingida a 80Km por hora, seu corpo foi arremessado em direção em direção a uma vitrine com um vestido Dior.

Eu não estava lá. Não pude fazer nada.