Oitavo imperador

Mateus entrou em sua casa amarela, com crianças igualmente amarelas e com sua esposa amarela. Pediu licença ao cachorro amarelo e subiu as escadas até seu quarto amarelo. Tudo muito normal e aceitável, para uma vida igualmente amarela e sem rumo.

Abriu sua mala e dentro colocou suas roupas em tons de caqui, areia e cinza, juntamente com o retrato de suas crianças, das quais nunca sabia o nome direito e de sua casa em que nascera em algum lugar do interior indevassável desse mundo.

Por pura clemência, é que se deu ao trabalho de dizer a todos que não voltaria para o jantar, nem nunca mais, porque brincar daquele jeito já não era o bastante.

A esposa chorou mais por obrigação que por saber-se livre também. As crianças não entenderam nada. O cão não deu a mínima e a sogra, quando soube, esticou o beiço e disse: “já vai tarde”.

O mundo real, que emerge após se cruzar uma porta para sempre, pode ser tão assustador quanto uma cirurgia cardíaca. E a proximidade com a morte, às vezes, faz cruzarmos portas até então intransponíveis...

O dia marcava a entrada da primavera. Mas nada de ninfas loucas dançando como cretinas, nem pássaros cantando músicas idiotas. Apenas um sol inclemente, acelerando em todos o processo do câncer de pele, fumaça de carro, e gente correndo de um lado para o outro, crendo piamente ter alguma importância para o mundo.

Eu, na minha infinita e inevitável paciência, só faço contemplar, agora tentando aprender a andar sobre a terra, ao invés de voar tresloucadamente por aí. Sigo os passos do convalescente e então renascido Mateus, que carrega um nome que é mais ironia que bênção.

Ele para seu carro em frente a um café, sai, senta numa cadeira e pede ao moço do balcão uma água e um café. Seus olhos, pela primeira vez, faziam algum sentido, quando observou o mundo à sua volta assim como ele é. Imundo, interessante, povoado por aglomerados de átomos e incapaz de praticar o silêncio. E nessa mesma perplexidade, meu alter-ego assombra a Mariana, que toma conhecimento da equação que compus para ela. Um conjunto de variáveis complexas e intimamente relacionadas, que em progressão irregular, termina por produzir números astronomicamente mensuráveis. É o que ele pode fazer, quando a insuficiência verbal faz morrer aos poucos uma coisa entre o vício e a devoção, chamada de amor.

Mateus até sorri. Internamente. E já está bom. Principalmente quando na outra mesa, uma descarga de adrenalina faz o coração pulsar como o de uma presa ao fugir do predador. É mais um coração violado, cujo peito que o encerra nem mesmo precisou ser aberto.

Este nome que não foi dito, cruza os olhos com o de Mateus, que pensa: Aquele que escreve minha vida, tem mesmo muita pressa em me atirar contra esses amores tolos ou apoteóticos. Será que nunca poderemos viver livres de nossas emoções?

Faço como aquele que, graças a uma poesia ruim e muita loucura, tocou fogo em Roma. (respondo).

Eu, anjo, vejo que dali para frente nenhum tempo verbal será respeitado. E já nem sei por que insisto em caminhar como homem, se jamais serei um humano. Não no sentido psicótico da palavra. Certamente, creio que houve mais de anjo que de homem naquele sorriso mandado de volta da outra mesa, dependurado na boca de Heitor.

Alice e Nicolai é que talvez estivessem mais próximos da verdade. Um violoncelo que ficou pelo caminho e marcas de cortes nos pulsos, são a expressão máxima de uma escolha. Talvez Mateus viesse a entender de fato o que é não ter mais uma casa, pertencer ao mundo, e se aventurar numa busca por aquilo que sua natureza diz que é certo.

De repente percebo que há mais anjos neste lugar. Mas diferente de mim, não contaminados pela feiúra do mundo. Só assim me dou conta do quanto de luz perdi, ao me envolver além do recomendável com os peões do tabuleiro.

Aos poucos, todos se vão, ficando apenas aquele a quem chamo de oitavo imperador. Daqui para frente, sou eu também desconhecedor da natureza matemática das coisas. É tudo música...

Gostaria de poder entendê-las, gostaria de poder criá-las, tão indecifráveis, as partituras....

O oitavo imperador me diz que sou ainda um anjo. Mas então, o que é aquilo que sei também ser e que está trancado numa caixa dentro de uma cristaleira antiga, numa cidade do interior???