JOANA DA NORATA

Lêda Torre

Como é salutar, fazer uma longa e distante viagem pelo túnel do tempo!! Nos anos marcantes de minha infância, era costume daquela época, quase todas as famílias, ter alguém como acompanhante, um tipo assim de ama-seca, normalmente uma anciã, nem sempre parente, mas era como se fosse, ou até mais, pela tal consideração, no seio das famílias. Eram boas companheiras para a criançada e velhas contadoras de histórias.

Dona Joana, era "moça velha", tão cheirosinha, cheirava a talco Cashemira Bouquet, às vezes Tabu, senhorinha muito recatada, quase pura! Cheirosinha mesmo!!! Muito prendada numa cozinha, que dava gosto degustar seus quitutes, seus bolos, suas broinhas crocantes de tapioca.

Sua cor era parda, cabelos longos e lisos, olhos puxadinhos, rosto fino, meio amendoados; bem magrinha que ela era; corpo magro e longo, tinha cintura de pilão; de tão prendada, fazia cada bolo que só ela mesma! Vivia disso. Não tinha nenhuma renda financeira fixa, de qualquer que fosse a fonte. Fazia bolos e mil tipos de salgados e doces, para sobreviver. Deliciosos por sinal: era bolo de trigo, de fubá, de macaxeira, de tapioca de caroço, de tapioca fina, de pão, etc.

Fazia um “grolado” (um tipo de farofa da farinha de mandioca, ainda fresca), com azeite de coco babaçu apurado sem torrar o coco, típico da região, ovos de galinha caipira, que de tão gostosos seus bolos, o sabor era tão tentador, que já bastava, nem era necessário tomar com leite aquele café torrado natural com rapadura; era um completo cardápio trivial que, só de pensar, dar água na boca. Sem deixar de lembrar neste rol de bolos, o famoso bolo “cacete”, que se faz aqui no Maranhão até hoje, parece mesmo um bastãozinho, feito de tapioca escaldada e bastante ovo caipira com azeite de coco babaçu apurado.

Então, depois de detalhar as prendas de dona Joana da Norata, como era conhecida de todos, ela tinha dentre tantas habilidades, uma das que ela gostava mais, a de contar histórias para crianças, seu palco era ao ar livre, de preferência, à noite! E a criançada da vizinhança rodeava a contadora de mil "histórias de trancoso", como se dizia. Pois, a nossa velha amiga, sempre ficava lá em casa quando minha mãe tinha que dá plantões à noite no Hospital da cidade, onde era funcionária do estado da saúde, ou quando precisava viajar pra capital ou outros lugares.

Era solteirona, de boa fé, sozinha, sem ninguém nesse mundo, não tinha mais pais, não casou, nem nunca namorou, não teve filhos, nenhum caso de amor que se soubesse, assim dizia nossa Nana, e acreditávamos piamente em sua pureza; amava apenas seus amigos e as crianças da nossa rua, que eram tantas! Chamavam-na até de “Nana”. Quando ia lá pra casa, quase todo dia à noite, levava uma tigela cheia de bolos: ora, broas, outro dia cocadas, ora pamonhas, etc, além de nos conquistar com suas fabulosas histórias de Trancoso ou da Carochinha.

Era da Norata, porque sua mãe se chamava Norata, e por serem muito unidas e viverem muitos anos juntas, apegaram-se uma a outra, ficou seu cognome de Joana da Norata. Pois bem, sua rotina era assim: levantava bem cedinho, preparava as massas de seus bolos, fazia ao mesmo tempo seu almoço, e até no máximo catorze horas, tudo já estava prontinho, assados, crocantes, aromáticos e deliciosos, seu material de trabalho estava pronto para a lida vespertina, o seu laboro. Dentre tantas comidas, bolos, salgadinhos e doces que ela fazia, sua maior especialidade era o bolo Cacete.

Era quinze horas, a hora do café da tarde, regado a bolos da Joana da Norata! Lá vinha ela, com o tabuleiro na cabeça cheio de bolos diversos... As broas quentinhas ainda... Era de tapioca, cobertas com um pano de prato branquinho e bem limpinho, feito de saco de algodão. E como boa entendedora do assunto, a dona Joana vinha apregoando assim: - Olha a broa quentinha!! Quem vai querer??! Seu canto apregoado esvaia-se pelas ruas da cidadezinha, fazendo toda uma rota já conhecida por ela e pela criançada que ao ouvir seu alarido, pedia logo: - “mãe, compra, compra a broa da Joana da Norata!...Nós mesmos, pedíamos.

Atravessava a longa Rua da Mangueira, a Rua do Cancão, a Serrinha, a Rua do Hospital, e sem mais nada. Vendera tudo! O bom, foi que se salvou o saldo do seu dia. E com ares de satisfeita, voltava para casa, porque estava quase na hora de dona Joana ir pro seu novo trabalho: o de contar histórias para nós, aquela criançada toda. E como era sempre à noitinha, ficávamos mesmo na nossa calçada, que é enorme, a lua como ouvinte, mesmo sem ser convidada, a ouvir histórias e mais histórias da nossa velha amiga, também até as estrelas ouviam Nana contar tão lindas histórias!! como sinto saudades daquele tempo!!!

Depois desse novo expediente, a nossa companheira voltava para sua casinha tão simples, logo ali mais abaixo do nosso casarão, lá na Rua do Cancão. No outro dia, tudo começava outra vez, e se por ventura algum dia a contadora de histórias faltasse, ficávamos logo, todos preocupados, tínhamos medo da nossa Nana morrer. E quem faria bolos tão gostosos, e quem contaria nossas histórias? Não, nem pensar! Era só saber que ela estava doente, ia aquela "tropinha" de crianças visitarem Nana, nem que depois que chegássemos em casa, a “taca “ comia era feio!, Não pelo gesto de visitar nossa amiga, era pelo fato de que nós saíamos quase sempre escondidos, assim, rapidinho, porque se nossa mãe visse, talvez não nos deixaria ir, só as crianças.

E toda tarde, o brado manso da dona Joana da Norata ecoava pelas ruas da cidade de Colinas, assim dizendo:

- Olha a broa quentinha!!! Olha a broa!!

- Olha o bolo cacete!! Olha o bolo cacete!!

- Quem vai querer bolo?

- É barato, pode vir, pode vir!!!

Como não tínhamos relógio, nem mesmo sabíamos como ler um relógio, os pregões da Nana, nos dizia a hora!! A gente já sabia que eram três horas da tarde, hora do cafezinho costumeiro!! Era a hora de merendar! A freguesia certa e o saldo também. O dia estava garantido.

Mas, sempre à noite, depois do seu laborioso trabalho, lá estava de novo dona Joana, analfabeta, sua contação era coerente, com muita fluência e melodia, imitava os personagens, nos emocionava, até lágrimas corriam nas nossas faces infantes, ficava com pena pelas tragédias das histórias; fazia-nos sorrir com os personagens cômicos, e nos dava medo com seus personagens fantásticos, mitológicos e de terror, de bruxas, de dragões, de lobisomens, do Lobo tão Mau e o Chapeuzinho Vermelho, da Branca de Neve, da Rapunzel, da Formiguinha e do Dom Ratão, da Bela Adormecida, do Gato de botas e tantas outras que todos nós e toda criança do planeta, conhece muito bem. O céu era o nosso limite! se fosse por nós, a Nana nunca sairia dali para sua casa.

Era uma infinidade de personagens, que nem sei como aquela cabeça era tão fértil, numa pessoa que sonhava um dia aprender o ABC e somente escrever seu nome e saber “escrevinhar um “biete”, para não ter que sempre pedir para os outros fazer ou ler”.

Entretanto, lá pelas vinte e três horas da noite ou até mais, era chegada a hora de nossa Joana ir embora. Era preciso voltar para casa porque cedinho começava tudo de novo. Era a hora de puxarmos seu braço, sua roupa, para não ir embora, pedíamos até que ela dormisse lá em casa, a gente daria a nossa rede ou cama pra ela. Muitas histórias nos marcaram, principalmente, as bíblicas e como se fosse uma profetiza, ela nos alertava naquele tempo, a respeito de todas as coisas que estão acontecendo hoje em dia; ela já dizia, e achávamos que eram coisas horrorosas , não poderia acontecer, como mulher se trajar como homem, no caso o uso das calças compridas para mulher, para ela, iria chegar um tempo de homem desejar ser mulher e vice-versa, pais e filhos se desconheceriam, crimes bárbaros iriam acontecer, o amor esfriaria na terra, e onde era mar, viraria sertão, e onde seria sertão, viraria mar...esses ensinamentos que a gente nunca se esquece....quantas saudades da nossa Nana!!! Coisas de infância!

Para nós, seus fieis ouvintes, tudo que ela nos contava, ainda que fantasioso, era verdadeiro para nós, seus fãs. E quando nossa mãe precisava viajar para outra cidade, como de vez em quando vinha para a capital, adivinhem quem ficava conosco direto até a volta de mamãe? Joana da Norata!

______São Luis – MA, 05/07/2010____________-

Lêda Torre
Enviado por Lêda Torre em 06/07/2010
Reeditado em 17/04/2016
Código do texto: T2360876
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