Conversa de barbearia
As barbearias da minha infância hoje sobrevivem apenas na periferia da cidade ou se transformaram paulatinamente em cabeleireiros, que, por sua vez, sofisticaram-se a ponto de prestar também o mesmo serviço dos “salões de beleza”. Esses salões eram exclusivos aos penteados e pinturas do mundo feminino e barbearia era negócio para homem. Somente nos últimos anos, esses ambientes começaram a receber anúncios de unisex. Um dos privilégios dos tempos de menino era podermos sentar na cadeira da qual se levantavam, às nossas vistas, o prefeito, o vigário, o juiz, o delegado; era sermos atendidos como essas autoridades e gente grande. Para ser sincero, o trato não era o mesmo. Já se sabia que Zé Pequeno não variava o nosso penteado, repetia sempre o “corte número zero” e, aos mais crescidos o número dois.
Mas uma coisa sempre foi e continua a mesma: barbearia ou salão de beleza, o lugar continua sendo de muita conversa. O barbeiro, geralmente de língua afiada, é o carro-chefe. Puxa o bate-papo, confidencia segredo ou conta fuxico, com o tom de voz que caracteriza o assunto. Até Seu Euclides, barbeiro do Seminário, não era diferente; mastigava a saliva como se estivesse se preparando para um novo mote. Dizem que, nos sofisticados ou populares salões de beleza, as mulheres não deixam por menos: Ai de quem cair na lâmina daquelas tesouras.
Semana passada, decidi ir ao cabeleireiro que mais se parecesse com barbeiro. E lá encontrei um senhor, gordo e de estatura mediana, que fazia “barba, cabelo e bigode”. Tinha voz grave, de barítono. Falava sem parar, sem dar trégua nem para um pitaco do dono da casa. Era ele quem iniciava, prosseguia e terminava o assunto. Reiniciou a conversa, abordando política: - “Esse governo não tem o que fazer, está acoitando esse italiano só para atrapalhar a vida da gente. Dizem que matou muitos por aquelas bandas”.
Ajeitei-me na cadeira de espera, como lhe sinalizando querer dizer alguma coisa. Pensei ilustrar a sua fala e quebrar o monólogo, citando outras versões. Numa revista, o acusado Cesare Battisti dizia-se inocente e confessava nunca ter ferido alguém e que teria abandonado sua facção política por discordar do assassinato de Aldo Moro. Tinha lido ainda que a França de François Mitterrand, ao contrário da de Sarkozy, deu asilo a esse mesmo refugiado e a outra companheira sua e que a Itália restou em silêncio, respeitando a soberania francesa. Por que somente com o Brasil “la cara patria” estava tendo tal reação? Vi também algum periódico alegar ser o atual governo de Silvio Berlusconi radicalmente de direita e que pretende prender, a qualquer preço, Cesare Battisti por ter sido radicalmente de esquerda. Li, além disso, que alguns brasileiros, inclusive ocupantes de postos elevados no atual governo, em tempos idos, asilaram-se na França. E que, por outro lado, aqui teriam julgado o pedido ideologicamente. Gostaria de pôr à discussão essas questões.
Mas nada de poder interferir na conversa. Foi quando o senhor respirou e me deu tempo de, rapidamente, indagar: - A quem o caso desse asilado está atrapalhando tanto? Solenemente, o homem afastou a navalha da sua barba, olhou para trás, como se desejasse ver de onde partira o atrevimento da interrupção e respondeu pausadamente: - “Você acha pouco? É por causa desse cafajeste que talvez não haja o jogo do Brasil contra a Itália”.
As barbearias da minha infância hoje sobrevivem apenas na periferia da cidade ou se transformaram paulatinamente em cabeleireiros, que, por sua vez, sofisticaram-se a ponto de prestar também o mesmo serviço dos “salões de beleza”. Esses salões eram exclusivos aos penteados e pinturas do mundo feminino e barbearia era negócio para homem. Somente nos últimos anos, esses ambientes começaram a receber anúncios de unisex. Um dos privilégios dos tempos de menino era podermos sentar na cadeira da qual se levantavam, às nossas vistas, o prefeito, o vigário, o juiz, o delegado; era sermos atendidos como essas autoridades e gente grande. Para ser sincero, o trato não era o mesmo. Já se sabia que Zé Pequeno não variava o nosso penteado, repetia sempre o “corte número zero” e, aos mais crescidos o número dois.
Mas uma coisa sempre foi e continua a mesma: barbearia ou salão de beleza, o lugar continua sendo de muita conversa. O barbeiro, geralmente de língua afiada, é o carro-chefe. Puxa o bate-papo, confidencia segredo ou conta fuxico, com o tom de voz que caracteriza o assunto. Até Seu Euclides, barbeiro do Seminário, não era diferente; mastigava a saliva como se estivesse se preparando para um novo mote. Dizem que, nos sofisticados ou populares salões de beleza, as mulheres não deixam por menos: Ai de quem cair na lâmina daquelas tesouras.
Semana passada, decidi ir ao cabeleireiro que mais se parecesse com barbeiro. E lá encontrei um senhor, gordo e de estatura mediana, que fazia “barba, cabelo e bigode”. Tinha voz grave, de barítono. Falava sem parar, sem dar trégua nem para um pitaco do dono da casa. Era ele quem iniciava, prosseguia e terminava o assunto. Reiniciou a conversa, abordando política: - “Esse governo não tem o que fazer, está acoitando esse italiano só para atrapalhar a vida da gente. Dizem que matou muitos por aquelas bandas”.
Ajeitei-me na cadeira de espera, como lhe sinalizando querer dizer alguma coisa. Pensei ilustrar a sua fala e quebrar o monólogo, citando outras versões. Numa revista, o acusado Cesare Battisti dizia-se inocente e confessava nunca ter ferido alguém e que teria abandonado sua facção política por discordar do assassinato de Aldo Moro. Tinha lido ainda que a França de François Mitterrand, ao contrário da de Sarkozy, deu asilo a esse mesmo refugiado e a outra companheira sua e que a Itália restou em silêncio, respeitando a soberania francesa. Por que somente com o Brasil “la cara patria” estava tendo tal reação? Vi também algum periódico alegar ser o atual governo de Silvio Berlusconi radicalmente de direita e que pretende prender, a qualquer preço, Cesare Battisti por ter sido radicalmente de esquerda. Li, além disso, que alguns brasileiros, inclusive ocupantes de postos elevados no atual governo, em tempos idos, asilaram-se na França. E que, por outro lado, aqui teriam julgado o pedido ideologicamente. Gostaria de pôr à discussão essas questões.
Mas nada de poder interferir na conversa. Foi quando o senhor respirou e me deu tempo de, rapidamente, indagar: - A quem o caso desse asilado está atrapalhando tanto? Solenemente, o homem afastou a navalha da sua barba, olhou para trás, como se desejasse ver de onde partira o atrevimento da interrupção e respondeu pausadamente: - “Você acha pouco? É por causa desse cafajeste que talvez não haja o jogo do Brasil contra a Itália”.