As páginas de Mateus
O que, de fato, me prende a estas pessoas e me torna refém de suas dores?
É assim, me escondendo neste altar barroco, entrelaçado em folhas de acanto e esculturas de barro, que tento libertar meu coração que não pulsa dessas angústias que deveriam ser dos homens, e não de uma criatura celeste. Criatura essa, creio, que esteve tempo demais por aqui. O suficiente para se contaminar com a feiúra das atitudes e a incredulidade disfarçada de fé. Até para quem esteve mais alto.
E de repente, se altera o silêncio do templo. Dessa vez, não é Alice, que não mais suportando a condenação de estar viva, corta seus pulsos, em busca de um alívio imediato para suas escolhas. Isso não é poético. É uma equação.
Agora quem perturba a parede construída com orgulho e argamassa é um homem. Era o mesmo que eu havia visto tempos atrás, enquanto pairava sobre uma mesa cirúrgica, e via o quão besta é a vida, que depende tanto de um pedaço de carne pulsante.
O homem tem um nome. E todos eles não têm? Não significam nada, não dizem nada, no fim. Mas servem para ser um punhal no coração de quem ama, ou um remédio traiçoeiro no espírito de quem sabe ter posse de uma mente corrompida. Nomes são pouco definitivos.
Este possui o nome de Mateus. Um nome que não diz nada de um negociante pouco esperto, de um espírito que engoliu toda a imundície do mundo, para não sujar as paredes em tons de doce de sua casa, e de um poeta enterrado sob toneladas de concreto.
Eu vi seu coração parar e insistir de maneira petulante, quando parecia encerrado o momento de afetação, que é viver de maneira meteórica e aparentemente infinita, quando esse instante não diz nada á natureza.
Eu prefiro palavras sem gosto, tons de azul sem empáfia e se me alimentasse, certamente escolheria um veneno que desse fim a esse instante fugaz. Sou hoje mais palhaço com asas do que guerreiro com armadura brilhante. Ousaria dizer, comediante narrador das sombras dos descendentes da triste figura.
Para coagir quem me segue pelo mundo a permanecer comigo, é que vou anestesiando lentamente seu poder de se desvencilhar de mim. E aqui chegamos nós, com o homem Mateus, se ajoelhando da maneira mais elegante que já vi, mesmo que sobre seus joelhos pese a pena muda e milhares de páginas não escritas, ou uma mulher que nasceu turva e disforme, e que se acorrentou em sua vida, porque não ousou dizer vários nomes.
Em sua prece, aos poucos, percebi a mesma luminosidade de uma banda do interior, que a algum tempo esteve com a pequena suicida, e a guiou até um violoncelo seguro de seu destino. As preces deveriam ser todas assim...
Um peito aberto para a atmosfera, cortado ao meio por uma lâmina perigosa como as palavras, pode deixar escapar a coragem encarcerada. E o que diz a oração, que quase ofusca meu verbo? Arrependimento, matemática... É tudo tão diferente...
Aquele que carrega em seus ombros o nome de Mateus, disse certa vez que tudo teria um fim, mesmo sabendo que somente no futuro o que disse teria significado. Em seu coração que pôde reviver, os nomes poderiam enfim fazer sentido.
E não faz sentido algum acordar após a narcose, num chão de um apartamento escuro, onde a porta não permite que a luz entre. Meu alter-ego é especialista em criar essas imagens. Corta seu próprio corpo para que não se perca a beleza trágica do que poderá ser um dia a sua morte, matematicamente equilibrada, com drapeados de tecidos encardidos, frutos apodrecidos numa bandeja e iluminação apenas no rosto e em alguns membros. Com sorte, Mariana entraria e se sentaria no sentido oposto do sofá. Fosse ela um pouco menos deselegante, faria uma oração cujas palavras são irrelevantes, mas com uma disposição de pernas e braços que completaria o equilíbrio geométrico da cena. Fim planejado mas de possibilidades remotas....
A luz que ascende ao céu é como os fagotes em seus registros mais serenos, quando estes se juntam às cordas. Neste dia, em que me surpreende a luz que brota de uma garganta, vejo que ainda posso ter uma paz provisória. Alice, não morrerá por hoje. Nicolai parece até sorrir. Mariana contém seu passo sempre decisivo e diz até ter esperanças. Meu outro irmão, minha cópia, vê o céu pela primeira vez sem manchas.
Eu, não altero minha natureza plasticamente adequada, mas sei entender agora o que essa gente tanto busca, ao se arrastar por aqui.
Eis o martelo de Deus...