Prá frente Brasil...(Viagem a Terra do Nunca)
Viagem à Terra do Nunca (Prá frente Brasil...)
Os meus primeiros dias de trabalho na Tintas União foram dias muito duros, tão duros como eu jamais imaginaria que pudessem vir a ser. Logo no primeiro dia de trabalho, chegou um caminhão vindo das minas de calcário de Itapeva, no interior do estado de São Paulo, carregado de pedras de cal virgem para ser transformado em cal hidratada e tinta em pó nos moinhos da empresa. Uma nuvem de pó esbranquiçado nos encobria, enquanto lançávamos as pedras de cal para baixo, nas quais ia sendo adicionado ácido para quebrá-las. O local ficava mais parecido com uma sucursal do inferno do que propriamente um ambiente de trabalho.
Apesar da dureza do que fazíamos, executado com a precária proteção de um boné que elaborávamos com papelão e umas luvas de raspa de couro, eu me divertia vendo as pedras explodindo e os nossos rostos todos pintalgados pela poeira da cal.
Havia tipos hilários trabalhando na fábrica de tintas. Um deles, o Chavinha, um baixote que fazia as vezes de vigia e faxineiro, pele azeitonada, um precursor dos fanáticos evangélicos de agora, muito parecido com o Zangado, personagem dos Sete Anões; o encarregado João Grande, com umas pernas enormes e um corpo seco como uma tripa esticada, a imagem perfeita do Dom Quixote, do qual ele não fazia a mínima idéia de quem fosse; o Sebastião, outro encarregado, um gordinho bigodudo, de pele bem clara, (seria facilmente a encarnação do Sancho Pança) sempre risonho, palmeirense doente; Zé Alberto, o escriturário e galã nas horas vagas, tinha uma postura de um desses artistas de televisão, imagem que cuidava com muito zelo e aparato; Paulo Kovalinsk, um imigrante russo, magro e branco com uma folha de papel, sempre de muito bom humor naquele seu sotaque ainda arrevesado; e, pra fechar a lista com pompa e circunstância, havia o Euclides, um rapaz que morava numa chácara próxima, que tinha o instigante hábito de colocar a dentadura prá fora da boca e segurá-la com a ponta da língua, recolhendo-a rapidamente, como um sapo.
Fechando o ciclo de encarregados havia a figura de um mineiro muito escolado, Geraldo Magela, como se anunciava pomposamente, dando mais impostação a sua voz, com trejeitos de locutor de radio. Ele cuidava do setor de expedição da fábrica, o que nos colocava em contato constante.
Geraldo Magela, um cara moreno claro, de olhos brilhantes e espertos, quase nunca parando nas órbitas, media mais ou menos 1,85 ms de altura e uns 80 kgs de peso, tinha sempre o cabelo emplastrado de brilhantina, como era comumente usado pelos artistas da época.
Formávamos uma turma e tanto naquela fábrica...
Na hora do almoço o jogo de futebol era disputado num campo irregular, com gritos de incentivo e xingamentos vindos da plataforma de carregamento e descarregamento dos caminhões , emitidos por quem não participava do aguerrido jogo.
Grandes brigas ocorriam durante a disputa dessas partidas, com a indefectível turma do deixa-disso tendo sempre de entrar em ação para separar os brigões, quase sempre os mesmos.
Comecei a escutar uns gritos estranhos “Vai Mandioca!”, “Ahê, Mandioca!” e não atinava quem seria o tal Mandioca, até que, em um determinado momento, fiz um gol e ouvi os tais gritos em ovação: “Boa, Mandioca!”.
Pronto: a platéia havia decidido que eu passaria a ser chamado de “Mandioca” dali para a frente.
Não achei a idéia muito alvissareira, no entanto, sabia que seria de bom alvitre não contestar o tal apelido, fato que só agravaria ainda mais a aplicação do mesmo.
Como eu tinha boa caligrafia e uma escolaridade acima do razoável para a época, fui escalado para marcar os fardos de tinta com os nomes dos clientes e das cidades para os quais seriam enviados, após o antigo marcador, o Joaquim, ter sido requisitado para ir trabalhar no escritório com Zé Alberto.
Eu, literalmente, viajava, quando escrevia nos fardos de papel os nomes dos clientes e suas respectivas cidades. Sentia-me em cada uma delas, saboreando cada nome com ares de degustador de vinhos finos. Percebia as pontes do Recife, as montanhas de Machado (Minas Gerais), ficava tentando entender como seria Pancas, no Espírito Santo, Cuiabá, no Mato Grosso..
Cada uma daquelas cidades que eu não conhecia, eu dissecava através da repetição de sues nomes colocados com o pincel nos fardos de papelão, tarefa que eu executava com o maior esmero, como se fosse a coisa mais importante do mundo escrever todos aqueles nomes. Eu alisava os fardos com enorme carinho, antes de começar a escrever, e guardava comigo a impressão de que a minha letra seria reconhecida por quem a visse gravada naqueles fardos, como se as mesmas contivessem parte de minha alma.
Nessa altura, havia chegado na empresa um grupo de meninos entre quatorze e dezesseis anos, contratados para trabalharem na fabricação de tinta látex. Era um grupo composto de cinco garotos, comandados por um menino espigado, no qual coloquei logo o apelido de Mandachuva.
Para mim foi muito bom, pois tínhamos idades próximas, fato que me deixou bem mais à vontade dentro da empresa, visto que eu, até então era o mais novo dentre todos que trabalhavam ali.
Dentre os meninos, um baixinho a quem chamávamos de Anão, aproveitou o apelido e fez uma rima em seu boné, escrevendo assim: “Anão, o bão.”, desfilando todo pampeiro pelas dependências da fábrica com o chamativo boné.
Quando saíamos de casa para trabalhar, eu e meu tio Moisés, levávamos nossas marmitas, quase sempre contendo arroz, feijão e como complemento, ovo frito ou uma sardinha. Eu já não agüentava mais todos os dias abrir a marmita e deparar com aquela sardinha parecendo me encarar, antes de ser comida por mim. De vez em quando minha tia da Glória colocava duas cabeças de sardinha, as quais eu atirava fora, já saturado de tanto vê-las.
Das filhas de minha avó, a lendaria Dona Maria Pequena, tia da Glória era a que menos tinha adquirido habilidades culinárias, fato que só agravava a parca dieta que nos oferecia.
Que saudade me dava da comida que minha avó fazia, sempre muito requintada...
Quando recebi meu primeiro pagamento não pensei duas vezes: fui a um restaurante nas proximidades da fábrica e me regalei com um lauto almoço, no qual havia pedaços de frango e uma incrível salada de repolhos, coisa que há séculos eu não via. Voltei para o trabalho me sentindo um rei, e até o céu me parecia mais azul, tal a satisfação que me acometia.
Os dias transcorriam na celeridade dos meus dezenove anos, sempre fazendo o trajeto casa-trabalho, trabalho-casa, já com a Copa do Mundo de futebol em andamento, sendo disputada no México e mostrada pela televisão pela primeira vez na historia.
Assisti a alguns jogos no aparelho de televisão do seu Pedro, um espanhol que morava logo acima da casa de tia da Glória, e para onde acorriam todos os moradores da vizinhança, encantados com a tremenda novidade que o advento da televisão representava. A mulher dele, dona Guiomar, uma baiana bem falante, gostava muito de mim, fato que me proporcionava um lugar privilegiado diante do tal aparelho, no qual se colocava uma sobre-tela para se ter uma impressão de visualizar as imagens em cores.
“Todos juntos vamos, prá frente Brasil, salve a seleção” poluía os nossos ouvidos, assim como o chamamento pseudo-patriótico “Brasil: ame-o ou deixe-o.”
Eu não sabia direito o que estava acontecendo, mas sempre notava as caras graves dos locutores lendo pronunciamentos sombrios dos generais de então, liderados por um zangado Garrastazu Médici, cujo nome já nos deixava com calafrios.
Íamos, eu meu tio Moisés, de ônibus desde a Vila Silviânia, aonde morávamos, até próximo da fábrica de tintas, percorrendo a pé uns dois quilômetros, trecho que aproveitávamos para conversar um pouco, apesar do meu tio não dispor de um vocabulário muito extenso. Ele se achava muito orgulhoso de mim, por eu ter sobrevivido ao duro teste do trabalho com a cal na empresa, teste que espantava muita gente, fazendo a maioria desistir do trabalho.
Lembrávamos também dos tempos em que ele comercializava farinha de mandioca na feira de Itabuna, quando eu também o ajudava...
Meu tio Moises era um bom homem, sólido e triste como a maioria dos operários de todo o mundo, sempre a viver como bois caminhando diariamente para o abate.
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