Um dia de Cão - A saga do Olaria Futebol Clube, (ou futebol da gente pequena)

Viagem a Terra do Nunca (Um dia de cão: A saga do Olaria Futebol Clube (ou o futebol da gente pequena)

Lá pelos idos de 1964 o Brasil inteiro andava entusiasmado pelo futebol. O nosso selecionado, o famoso escrete canarinho, havia se consagrado nos campos do estrangeiro, ganhando as copas da Suécia e também a do Chile, aqui mesmo na América do Sul.

Em Gongogi formaram-se quatro times de futebol infantil, já que os adultos formavam na esquadra gloriosa da Associação Atlética Pedrinhas, um timaço que impunha muito respeito aos adversários. Os meninos, aqueles que seus pais detinham mais recursos econômicos, encabeçaram os esquadrões de futebol da criançada. Me lembro que havia o Botafogo, o Vitória, um indefectível Flamengo, e um time de camisas azuladas, confeccionadas num tecido de algodão, que Dorinho (Dorival Simões, filho do prefeito da cidade) pusera o nome de Olaria, homônimo do time carioca sediado na Rua Bariri.

As partidas disputadas entre os quatro times de moleques davam-se em clima bem aguerrido, acirrado mesmo. Os bons jogadores da cidade formavam no Flamengo, time da preferência da maioria, no Botafogo, (o segundo mais popular entre a molecada) e no Vitória, ficando a raspa de tacho para o Olaria, que só tinha de bom o goleiro, o próprio Dorinho, o faz-tudo do time: dono, goleiro e técnico, tudo isso ao mesmo tempo.

Não é preciso ser muito esperto para se chegar a conclusão de que o Olaria Futebol Clube era o saco de pancadas do futebol dos pequenos da cidade.

Como sempre tenho a mania de torcer pelo mais fraco, as minhas simpatias recaíram no pobre coitado do Olaria, com o qual eu sofria, assistindo as impiedosas surras que o azulão levava de seus adversários.

O que de bom havia no Olaria era as imponentes defesas que Dorinho fazia. Vestindo uma camisa de mangas compridas, de cor avermelhada, ele, contando por volta de dezesseis anos, fechava o gol, impedindo que a humilhação do meu time do coração fosse ainda maior.

Dedeu, um dos seus irmãos, formava no meio de campo do Botafogo, juntamente com Cadete, um crioulo de pernas finas e duras que pareciam de aço. Contudo, nem por ser irmão de Dorinho, Dedeu deixava por menos: chegava a me arrepiar os tirambaços que ele desferia a queima-roupa, após driblar toda a frágil defesa do Olaria, inclusive o Mané Jorge, um zagueiro impiedoso e truculento, irmão do craque Cadete.

Nem aquele trator de ébano era suficiente para impedir os rápidos ataques dos times adversários de chegarem frente a frente com Dorinho, o qual, no mais das vezes, defendia milagrosamente os arremates a sua meta.

(...)

Um dia me chega Dorinho com uma proposta inusitada, que jamais eu esperaria. Oferecia-me a esquadra azul e branca para comandar, pois estava de partida para Salvador, cidade na qual iria estudar.

Fiquei a um só tempo, encantado e assustado com a responsabilidade de tocar para a frente aquele exército de Brancaleone, dado que nunca vi o Olaria Futebol Clube ganhar de ninguém.

Mas ser o dadivoso proprietário daquelas camisas que eu tanto amava foi mais forte do que as minhas reservas de prudência.

Então, como por um passe de mágica eu passara de torcedor-sofredor a proprietário e goleiro-sofredor daquele time especialista em derrotas...

Cheguei em minha casa portando as onze camisas, ainda sujas da última refrega a que o pequeno Olaria se expusera: um massacre de 7 x 1 do Botafogo, time no qual jogava também o meu irmão Eri, um refinado meia direita.

Além de ter a responsabilidade de cuidar das camisas do time, ainda tive de sair a procura de alguns gatos pingados que se submetessem ao vexame de defender as cores azul e branca do meu time, o estigmatizado Olaria. E, pra minha desdita, tínhamos um jogo marcado contra o temido Flamengo, time do espetacular Dedeu, já cantado na cidade em prosa e verso.

Depois de várias andanças pela cidade, e usando de todo meu poder de persuasão. consegui arregimentar onze destemidos companheiros, a contar comigo mesmo, agora técnico, presidente e goleiro do time.

Reservas nem pensar: não podíamos nos dar a esse luxo. E caso houvesse algum disponível teria de usar a camisa com o suor e o cheiro do ocupante anterior, coisa que poucos tinham coragem de fazer.

(...)

Minha avó lavou as roupas da minha combalida esquadra, ficando eu a admirar aquelas camisas de um azul esquisito, penduradas no varal do quintal de nossa casa, sem querer sair de perto delas até que as mesmas secassem...

Os outros meninos da cidade passaram a me respeitar mais ainda, pois agora eu era o dono de um time de futebol, evento que fez com que eu melhorasse muito o plantel do meu Olaria. Até Tiririca, irmão mais novo de Cadete e um meia-atacante muito rápido, eu consegui subornar para que viesse somar conosco no embate contra o Flamengo.

No dia marcado para o portentoso confronto, o campo de futebol estava cheio de gente, todos querendo ver o novo Olaria a enfrentar o já conhecido Flamengo.

Do lado da esquadra rubro-negra estavam os já famosos Dedeu, Joélson, um ponta esquerda infernal, Jorge de Élton, e mais uma chusma de moleques sedentos de sangue, querendo ver o nosso time em pedaços.

Depois dos xingamentos, rizingas, e ameaças de praxe, fomos todos para dentro do campo, dar início a peleja tão esperada.

Não havia juiz, sendo as faltas e as reclamações marcadas no grito mesmo: quem tivesse a garganta melhor levava vantagem, salvo se a falta fosse mesmo desavergonhadamente flagrante.

Nesses casos extremos, só mesmo a ameaça de sopapo fazia as reclamações cessarem.

(..)

Passada a já previsível ocorrência de alguns entreveros não muito sérios a bola foi colocada no meio de campo e a partida começou...

Após cerca de uns quinze minutos de jogo, Tiririca, subornado para defender o Olaria, invadiu a área do Flamengo e chutou no ângulo de Leônidas.

Um incrível e inesperado gol para o Azulão.

Eu não cabia em mim de felicidade, e só vim a despertar dela quando tive de sair nos pés de Dedeu, impedindo gol certo e ganhando algumas escoriações como prêmio pela arrojada intervenção...

Depois de algumas bolas chutadas em nossa trave, algumas patadas do Mané Jorge nos atacantes adversários e minhas mãos quentes de tantas bolas defendidas, terminou o primeiro tempo do jogo, com a nossa esquadra vencendo o até então imbatível Flamengo por 1 x 0, um placar que ninguém, nem o mais empedernido maluco da cidade aventaria.

Veio o temido segundo período da partida, que não era cronometrada por um juiz, e sim por um dos que assistiam ao jogo do lado de fora.

Depois de alguns minutos de bombardeio em nossa área, Dedeu pede penalty, fato que ninguém se atreveu a contestar, apesar da jogada não configurar nenhuma infração. Nenhum de nós queria se atrever a enfrentar Dedeu na porrada, única maneira de reverter aquela marcação indevida.

Ele mesmo colocou a bola na marca fatídica e se preparou para o chute. Eu me coloquei no cetro do gol e quando senti que a bola partiu de seus pés fechei os olhos e saltei para um dos cantos do gol.

Só senti toda a molecada de meu time em cima de mim, comemorando a defesa que eu havia, incrivelmente, feito...

(...i

Olhei quase com pena para um inconformado Dedeu, que deixava a nossa grande área de cabeça baixa, e coloquei de novo a bola em jogo.

Alguns minutos mais tarde e um novo desastre acomete o já desmoralizado Flamengo: Leônidas engole um dos maiores frangos já visto naquelas paragens. Olaria 2 x 0 Flamengo.

Era desgraça demais num só dia para os brios dos bravos rapazes da esquadra rubro-negra, multivencedora até então.

O tempo fechou!!!

Pernada de um lado, cabeçadas de outro, e muito xingamento da mãe de um e de outro, resultando em alguns catiripapos de lado a lado...

Passado o calor da refrega, com os ânimos já serenados, o jogo recomeçou, com o Flamengo, felizmente, marcando dois gols, um deles do temido Dedeu e o outro, o do empate, de Jorge de Élton, (totalmente na banheira, registre-se, a bem da verdade) o que permitiu que pudéssemos dar término aquela partida mortífera, e sairmos sãos e salvos do campo, apenas com alguns olhos roxos e escoriações pelo resto do corpo.

O placar de 2 x 2, (e ainda mais contra o todo poderoso Flamengo!!!) foi a melhor coisa que o Olaria já conseguiu em toda sua história...

... e depois daquela experiência debaixo das traves corri a entregar as camisas de volta para a mãe de Dorinho, continuando esporadicamente como goleiro, a defender o glorioso Olaria e outros times; no entanto, nunca mais querendo saber de tomar conta de nenhum outro time de futebol.

João Bosco

Aprendiz de Poeta
Enviado por Aprendiz de Poeta em 04/07/2010
Reeditado em 13/07/2020
Código do texto: T2358007
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