Irani, Jurema (ou o difícil aprendizado das perdas.) Viagem a Terra do Nunca

Viagem a Terra do Nunca (Irani e Jurema (Ou o difícil aprendizado das perdas) (...)

Quando eu percebi que não teria futuro na Tintas União, que jamais passaria de um escriturário com modesta remuneração mensal na empresa, comecei a pensar em mudar de ares. A empresa não tinha o hábito de dispensar ninguém, buscando assim evitar as custas com indenizações trabalhistas, coisa que eu bem sabia, visto que trabalhava na parte administrativa.

Aassim sendo, ántes de deixar o trabalho, tratei de colocar em minha carteira profissional o cargo que eu realmente ocupava: Auxiliar de Escritório, função que me capacitaria a entrar em outra empresa fazendo o mesmo tipo de rotina que já desempenhava nos escritórios da fábrica em que eu até então trabalhava. Na minha carteira profissional constava o nada charmoso cargo de Servente, título que era dado a todos os que trabalhavam na Tintas União.

Como funcionário do departamento pessoal fiz a alteração e pedi para que Cidinha, minha auxiliar, assinasse a minha carteira. Isto providenciado comecei a faltar alguns dias e saí a procura de outro trabalho, coisa que não demorei a encontrar...

Pedi então demissão da Tintas União e fui trabalhar na Supergel, uma empresa que trabalhava com alimentos supergelados, suprema novidade naquele despertar dos anos setenta. Acabara de deixar um emprego numa empresa pequena em que tudo era rudimentar para fazer parte de uma grande corporação. O meu salário simplesmente triplicara com a mudança de emprego, o que fez com que eu tivesse acesso a melhores roupas e outros mimos com os quais eu ainda não estava habituado.

Na Supergel eu desempenhava as funções de escriturário, emitindo notas fiscais e fazendo lançamentos de contabilidade, tarefas das quais me desincumbia com facilidade. A maior mudança ocorreu no quesito almoço: enquanto na Tintas União eu tinha de optar pela magra marmita vinda da casa de minha tia, ou por pagar a minha refeição num restaurante modesto das proximidades, na Supergel eu passei a fazer as minhas refeições num refeitório ultra-limpo, com cardápio sempre variado, recheado de pratos até então estranhos para o meu conhecer sertanejo. Tinha cassoulet, uma espécie de feijoada branca, supremo de frango, lagarto recheado, que achei muito parecido com os lombos que a minha avó materna tanto gostava de fazer, além de uma grande diversidade de outros pratos que eram oferecidos aos clientes da empresa e a nós mesmos, os seus funcionários.

Junto comigo, no escritório, secção de expedição, trabalhava o João, que nos chefiava, e o Francisco, um cearense bom de conversa. Fiz uma amizade de imediato com o Francisco, facilitada pelo fato de sermos ambos nordestinos e não existir a barreira hierárquica que a chefia exercida pelo João representava. O Chico tinha uma particularidade que me deixava curioso: vivia com um gerente da Varig, empresa de transportes aéreos, um certo Júlio, um cara bem pálido que ostentava um sobrenome francês do qual não me lembro, alguma coisa parecida com Delamare. Eu achava estranhíssima aquela ligação pouco ortodoxa.

O Chico, um cara fortão, de fartos bigodes e lábios cheios, gostava muito de mulher, o que me deixava ainda mais espantado como ele conseguia conciliar o gosto por fêmeas, e ainda dormir na mesma cama que o tal Júlio.

Mas, como o problema não era meu, fui levando a nossa amizade sem penetrar muito na intimidade dele, apenas usufruindo de sua companhia no escritório e durante as o horário de almoço, quando saíamos para almoçar juntos. E foi durante um desses almoços que conheci Irani, uma menina tímida e bonita, que se encontrava em companhia de uma morenninha pela qual o Chico logo se interessou.

Passamos então a dividir a nossa mesa com as duas meninas: Irene, com mais ou menos uns vinte e quatro anos, e Irani, que devia contar em torno de dezenove anos, quase a mesma idade que eu tinha na época.

Comecei a namorar Irani, encontrando-a sempre na saída da fábrica. Isso durou mais ou menos um mês. Nesse interim, conheci a casa de seus pais em Osasco, um município da Grande São Paulo: eram pessoas bem simples, com poucos recursos.

Logo percebi a falta de jeito de Irani comigo, como se ela me evitasse. Um dia ela me disse que não poderia namorar comigo porque o cargo dela na empresa era bem inferior ao meu, e que isso lhe trazia muito desconforto.

Ouvi em silêncio aquilo tudo que ela me falava, não querendo acreditar que alguém ainda tinha esse tipo de pensamento em pleno século vinte.

(...)

Passei uns dias chateado com aquele rompimento de um namoro que mal se iniciara, mas não tive nem tempo de ficar triste com a situação, visto que uma notícia pior ainda estava por vir...

Poucos dias depois de Irani ter terminado o namoro comigo, numa Segunda-Feira, cheguei a empresa para trabalhar, como sempre o fazia.

Procurei o meu cartão de ponto para dar entrada em meu horário de trabalho e não o encontrei. O guarda da portaria chamou então o meu encarregado, o João, que me chamou de lado e me comunicou que a partir daquele dia eu não mais trabalhava na Supergel.

Demorei alguns minutos até entender o que estava acontecendo: respirei fundo e agradeci ao João pelo tempo que trabalhamos juntos, sendo que o Chico também veio me ver, para as despedidas.

Saí das dependências da fábrica ainda meio zonzo, internalizando a indigesta informação que acabara de receber.

(...)

Hoje, passados longos anos desse episódio, tenho certeza absoluta que aí se iniciou a minha ojeriza por trabalhar em empresas com horário formal e controle de ponto.

Bem. Retornando ao que importa: após digerir como pude a perda do emprego na Supergel, passei a procurar outro trabalho, já que a minha sobrevivência assim o impunha.

Em minha terra existe um dito popular que prega o seguinte: "urubu quando tá de azar, o debaixo acaba cagando no de cima".

Era simplesmente o que parecia estar acontecendo comigo naquele momento de minha vida. Tudo parecia dar errado.

Claro que o meu abatimento com a saída da Supergel foi muito grande.

De repente vi todas as minhas projeções irem por água abaixo, como num sonho ruim, desses que a gente acorda transpirando e assustado no meio da noite. As minhas poucas reservas de dinheiro estavam por acabar e não tive outra saída senão abrir mão do quartinho que alugara pra morar sozinho, e voltar a viver com a minha tia da Glória, enquanto a maré continuasse daquela maneira.

Prá tentar sair do marasmo em que entrara arranjei um emprego de ajudante numa metalúrgica da Barra Funda, um bairro de São Paulo. Não era nada atraente, comparado com as minhas ocupações anteriores, mas era o que eu tinha à mão.

Nessa empresa, uma fabricante de latas para a Tintas Suvinil, eu desempenhava as funções de prensista, um serviço extremamente repetitivo e chato, sem falar no risco de perder um dedo ou parte da mão caso houvesse a mínima distração.

Consegui, a duras penas, ficar durante cinco longos dias na tal metalúrgica, até que um encarregado de turno cismou de me dar ordens aos gritos.

Não pensei duas vezes: mandei que ele enfiasse as tais ordens, junto com os seus gritos histéricos, aonde achasse mais conveniente, desde que fosse em seu próprio corpo, preferencialmente nas partes pudendas, mais precisamente no traseiro daquele filho da mãe imundo e ignorante.

(...)

Claro que foi mais uma demissão para se somar ao meu currículo.

Peguei a minha carteira de trabalho e, ao passar por cima do rio Tamanduateí, vi a oportunidade de colocar fim aquela maré de azar: joguei a carteira na correnteza do rio, a esperar que ela fosse prá bem longe, afastando de mim aquelas empresas e seus horríveis eflúvios.

Mais uma vez, num curto espaço de dias eu voltava a lidar com a falta de trabalho.

Caramba! Algo precisava ser feito para que o rumo de minha vida apontasse para praias mais amenas.

Já corria o ano de 1972 quando eu comecei a trabalhar na Glasurit do Brasil, fabricante das Tintas Suvinil, cujo nome eu via nas latas da malfadada metalúrgica em que havia trabalhado até bem pouco tempo atrás.

Não era nenhum emprego com o qual eu sonhara, mas estava dando para reequilibrar a minha autoestima. Ainda continuava exercendo as funções de ajudante, agora a carregar latas de massa corrida nos ombros, trabalhando em turnos de seis horas, manhã e tarde.

Lá pela altura do mês de Março desse mesmo ano um coleguinha de trabalho, um nordestino baixinho e tímido, me perguntou se eu não iria com ele ver um emprego numa empresa que anunciara vagas.

Fui com o rapaz até a tal empresa, situada bem perto de onde ambos trabalhávamos. De fora vi um portão de aço erguido, logo abaixo de um prédio ainda em construção. Era uma empresa que comercializava frangos abatidos e resfriados, e outras aves, mais uma das novidades daqueles anos setenta, tão cheio delas em nosso país.

O rapaz que me acompanhava, não me lembro do nome, não conseguia sequer entrar nas dependências do estabelecimento e dirigir-se a pessoa que estava encarregada de dar informações a respeito do tal emprego, fato que me fez interrogar o sujeito se realmente havia vagas na empresa.

Em cima de uma balaustrada de madeira encontrava-se Wilson, esse era o nome do encarregado pelo frigorífico, e ao ouvir minha pergunta, encarou-me e disse a queima-roupa: “Se é prá você, eu tenho vaga sim."

"Para ele não.”

Perguntou-me ainda o que eu sabia fazer.

Foi a minha vez de surpreendê-lo.

“O que você está fazendo agora?” Eu perguntei.

“Estou tirando notas fiscais” informou-me ele, com um leve sorriso nos lábios.

“O que você está fazendo, eu faço muito melhor do que você.” Informei-lhe incisivamente.

Ele me olhou mais atentamente ainda e fez-me mais algumas perguntas sobre a rotina de expedição de uma empresa.

Respondi com tranqüilidade, sabedor de que, mesmo ruim, eu tinha um emprego...

“Quanto você quer para trabalhar para mim?”

“Dois mil cruzeiros por mês.” Disse-lhe sem o menor constrangimento.

A essa altura de nossa conversa o meu companheiro de trabalho já havia seguido para a Suvinil, ficando eu e Wilson, a tratar de detalhes do meu novo emprego.

Depois de muita negociação convencíonamos que ele me pagaria quinhentos cruzeiros no primeiro mês, hum mil cruzeiros no segundo mês e, de acordo com o meu desempenho, ele me daria aumentos até atingir a cifra de dois mil cruzeiros que eu havia pleiteado.

(...)

Pedi dois dias para me demitir da empresa em que estava trabalhando, a Suvinil, e no dia marcado lá estava eu a receber instruções de Wilson sobre a rotina de sua empresa.

Wilson cumpriu rigorosamente com tudo o que havíamos combinado e, ao cabo de um ano de trabalho com ele, eu já dobrara o salário que havia pedido inicialmente, ganhando agora a vultosa soma de quatro mil cruzeiros por mês, a mesma importância cantada por Raul Seixas em uma de suas músicas.

Finalmente a ziquezira havia saído de meu caminho, deixando a área livre para que boas coisas voltassem a me acontecer.

Com a vida econômica mais arrumada pude então, outra vez, voltar a morar sozinho.

Ínicialmente aceitei a oferta que Wilson me fez e passei a morar num dos apartamentos ainda em construção, juntamente com um outro rapaz que trabalhava também no frigorífico, o Faria, Mauro Faria, como ele fazia questão de pontuar com seu marcado sotaque de caipira paulista.

(...)

Continuei indo a Carapicuíba, aonde morava a minha tia da Glória e, numa dessas idas a casa dela participei de um daqueles bailinhos tão comuns naqueles tempos. Os tais bailinhos ocorriam na casa de alguém, sempre animados por uma vitrola qualquer.

Nesse dia, um domingo já a noite, encontrei com alguns conhecidos e ficamos a conversar, de olho nas meninas que zanzavam por ali. Uma delas, alta e de cabelos ruivos me chamou a atenção. Ela devia ter por volta de uns vinte e um anos, quase da minha altura e uns enormes olhos de uma cor indefinível, oscilando entre o verde e o castanho-dourado.

Sem saber como, eu acabara de cair nas malhas de Jurema.

Os outros rapazes também estavam fascinados por ela, o que me fez pensar que as minhas chances de dançar com aquela menina linda seriam bem diminutas.

Ledo engano.

Quando menos esperei sinto uma mão em meu ombro, a perguntar-me qual era o meu nome...

Ainda envolto numa nuvem de incredulidade, vi-me a dançar com aquela menina encantadora, atravessado pelas flechas envevenadas disparadas pelos olhares de meus amigos, todos eles querendo a mesma coisa.

Jurema era amiga de uma menina que namorava o Jorge, um camarada que eu acabara de conhecer, amigo de outros amigos meus.

Depois do baile terminado fomos levar as duas meninas até a casa da namorada do Jorge, no distante bairro de Campo Limpo Paulista, na região de Santo Amaro, quase do outro lado da cidade.

Deixamos as meninas em suas casas e cada um de nós voltou para os seus afazeres...

Trocamos alguns telefonemas e saímos algumas vezes juntos, os quatro, como numa ocasião em que fomos a São Roque, na festa da Uva local, onde acabamos perdendo o último trem e tendo de dormir, (eu e Jurema de um lado, Jorge e a namorada de outro) sob as composições estacionadas.

Para mim foi uma noite de sonho, dormir abraçado com Jurema sob a guarda das estrelas, protegidos apenas por nossa coragem juvenil.

(...)

Naqueles anos de chumbo eu nunca descobri o que causou o sumiço de Jurema.

O que sei de concreto é que havíamos marcado nos encontrar no Shopping Center Lapa, recém-inaugurado, no qual fiquei esperando por ela até me embriagar com algumas rodadas de cuba libre, acompanhadas por incontáveis hambúrgueres.

Jurema não apareceu e eu terminei a noite me arrastando, totalmente bêbado e enjoado, de volta para o apartamento em que morava.

Aqueles imensos olhos trânsfugas de verde e castanho-dourado perseguiram as minhas noites mal-dormidas durante muito tempo.

Jurema foi mais uma das muitas perdas com as quais tive de me habituar

(...)

Aprendiz de Poeta
Enviado por Aprendiz de Poeta em 04/07/2010
Reeditado em 05/10/2019
Código do texto: T2357693
Classificação de conteúdo: seguro
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