O VÍCIO SOB VÁRIOS ASPECTOS

Estou em Camaquã, a 130 km da capital do RS, onde hoje interferi na 30ª Feira do Livro local, com a palestra sob o tema: "MINHA PÁTRIA É A LÍNGUA PORTUGUESA", retomando Fernando Pessoa, em seu semi-heterônimo Bernardo Soares, saído do Livro do Desassossego. Quase um século depois da morte do poeta visionário, o português do Universo. Cento e vinte (120) pessoas presentes, jovens, executivos do SESC e Prefeitura local, professores, muitos livros e transeuntes, no entorno de uma praça pública. Saíram, em 75min de palestra, somente uns 15% do total, se tanto, o que considerei um sucesso... Tudo sob a lona de um circo, onde me senti o redivivo bobo-da-corte da Média Idade, contando tricos e futricos, e algumas novidades sobre o idioma, história, literatura de costumes, drogas pesadas, comportamentos, riqueza e proletariado, tudo na tentativa de viciar o espectador em leitura, e não em crack, numa cidade de aproximadamente sessenta e cinco mil habitantes, que tem centenas de viciados, e é, segundo as más línguas, o sétimo (7º) lugar em consumo de crack e outras drogas pesadas, no RS. Essa a croniqueta do cotidiano na doma da palavra falada e escrita, com a similar empolgação de um jovem domador de cavalos. Enfim, um picadeiro em que clown e povo bateram palmas. Teimo em achar que aquele que passa por minhas mãos na cancha reta da palavra, nunca mais será o mesmo... E disse isso publicamente por três vezes, sem muxoxos ou cara feia... Percebo que a resistência ao duro monólogo foi bem suportada por uma plateia muda, (mesmo que havendo algumas sacudidelas de traseiros nas cadeiras) que de tropeiros da Palavra pouco sabem, porém estão ávidos pelo Novo. Creio que nem tudo está perdido. O vício da palavra parece que não será proscrito nem pelos políticos de plantão, que temem os que pensam, seja em tempos de cólera ou de danação de horizontes. Vamos ver o dia seguinte e o sibilo dos ventos do anonimato, após o palco do circo ser desmanchado. Observo que as tropas já não fogem em disparada. Há tropeiros e ginetes espalhados pelo potreiro da existência, tocando o aboio para as pastagens do futuro. Palavra e futuro são visões mágicas. E, no espelho mudo do meu quarto de hotel, Saramago, Vinicius, Cecília e Patativa do Assaré, chegam pelas mãos angelicais de Catulo da Paixão Cearense, que não conhecia Camaquã (do Rio Grande de Deus) desde maio de 1946, quando atravessara o Rio Profundo. E o sono rouba a palavra, sem nenhum perdão ou culpas.

– Do livro inédito O HÁLITO DAS PALAVRAS, 2004/11.

http://recantodasletras.uol.com.br/cartas/2355187