A VERDADE DAS HISTÓRIAS DE TRANCOSO
           
          À
boquinha da noite, quando menino não tinha mais nada a fazer, a não ser dormir, Tia Dulce, antes que minha irmã Marilene e Zezita Matos pedissem, perguntava : “- Quem quer história de trancoso? “ A gritaria da meninada “eu, eu, eu” só parava quando ela iniciava o gostoso conto.  Sentados no chão, em volta da tia, respeitávamos o silêncio sepulcral, maior do que o das aulas de catecismo de Dona Vicenza, interrompido apenas pelos insistentes “conta de novo”.
         
Esses contos não deixavam de ter um caráter doutrinal, variados, verdadeiras parábolas, que, ao fim, traziam uma lição moral. Fosse qual fosse o gênero: história de príncipes e princesas; castelos e guerras; reis e rainhas; cidades , campos e matas; e sempre trazendo um enredo que provocasse medo, até arrepios como os das bruxas, lobisomens, almas e assombrações, partes que ouvíamos de olhos fechados. Tia Dulce exagerava, sempre ao final repetia, mesmo que fossem necessárias duas verdadeiras lições morais, que o filho deve ser respeitoso e obediente aos pais. Mas, quando estávamos mentindo, ela própria nos admoestava: “ – Deixa de história de trancoso, menino!...”
         
Cresci sem saber o porquê do trancoso.  Ao longo do tempo, começaram a chamar semelhantes histórias com o nome de “conto da carochinha”, definindo-as de fantasiosas, quiméricas, que nunca aconteceram. Continuei preferindo “histórias de trancoso”.  Procurei pelo significado de como dizia Tia Dulce. Foi quando li, em alguns estudiosos do assunto, que ‘trancoso’ vem do popular contista português, Gonçalo Fernandes Trancoso, homem não tão culto, mas de extremo zelo pelo moralismo e religiosidade. Daí, construir enredos e enredos, com os valores da sua cultura para, originalmente, transmiti-los ao seu povo. Mas que findou sendo também a outras gerações e povos do além-mar, como são os casos de Itabaiana, Pilar e tantos outros interiores nordestinos.                                     
         
Atribui-se a Trancoso forte influência no conto literário em Portugal.  Influiu também na vida de muitas crianças que ainda tiveram o privilégio de conviver com avós, pais, tias e vizinhos, que tinham tempo de serem “contadores de história”.  Das lições que aprendi, lembro-me de uma muito aplicável à justiça e à política dos dias de hoje: como é difícil pedir perdão para quem merece castigo.