As dúvidas de Mahler



A mesa cirúrgica é um palco.
Enquanto observo seu músculo cardíaco exposto penso em como é desagradável a visão de um tórax aberto. E quão singular pode ser um órgão em funcionamento, mesmo com toda a invasão promovida por bisturis e instrumentos cujos nomes nem suspeito.
Assim como um coração doente, sinto que algo em mim deixou de funcionar, quando no teatro, em meio a inundação, vi um beijo iluminado por uma luz titubeante.
Eram Alice e Nicolai, finalmente cumprindo o seus propósitos: o de serem projetados para a dor.
Eu, aspirando secretamente a humanidade, segui em frente como todos eles fazem.
O peito que estava aberto, com o coração doente, agora está sendo suturado. Um bordado singelo feito na carne, que lembrará para sempre que nada é inviolável.
Eu, que pairo inerte sobre o corpo de Mateus, agora costurado, observo a narcose. Esse estado de anestesia e inconsciência, que é tão libertador e cômodo, e penso em quando este corpo retornar à vida.
De que matéria imperfeita e cheia de desejos, seria feito aquele morto temporário?
Em minha eternidade como malabarista, posso dizer apenas que espero apenas o pior. Mas algo estava diferente. E os anjos não se enganam nunca.
Do outro lado da cidade em reconstrução, o que sobrou de mim se droga. Espeta agulhas sucessivamente no braço, em busca de uma resposta que está trancada e sem saída no peito de Mariana.
No chão lavado pelas minha lágrimas divinas (anjos não choram), vejo os passos desesperados de criações singulares de Deus. Mais um que virá para esta câmara fria e com objetos cortantes, para fazer com que meu dia seja perfeito. Eu seguro a todos pela mão...
Alice agora, canta alguma coisa. Em breve, em seu ventre tão ultrajado, nascerá o que de puro ainda existe na terra.
Segue a sinfonia, com um estrondo apocalíptico...
EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 02/07/2010
Reeditado em 19/10/2012
Código do texto: T2353587
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