Porre
Porre
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
Alguém bate na porta da casa de Raulzinho, com insistência. Nesse momento o telefone também começa a tocar. O rapaz fica indeciso, estanca no meio do caminho. “E agora? De quem eu cuido primeiro?” Decide pelo telefone. Odeia o estardalhaço da campainha. Dá nos ouvidos. Corre para o aparelho. As batidas na porta persistem.
- Alô? Quem é?
- Eu, o Pedro. Por que demorou em atender?
- Pedro, meu amigo, me liga daqui a vinte minutos. Estão batendo na minha porta.
- Ué! Por quê?
- Que pergunta mais besta! Estão batendo, ora bolas.
- Mas quem faria uma coisa dessas?
- Vinte minutos, meu amigão. Tchau!
- Não, fale comigo. Espere Raulzinho. Agora fiquei preocupado.
- Preocupado com que, Pedro?
- Com o que acabou de me falar.
- Meu Deus, Pedro. Pedi para você me retornar a ligação em vinte minutos.
- Eu sei, eu sei...
- Então, cara, faça isso.
- Quem está ai, além de você?
- Ninguém.
- A Julia?
- Na feira.
- As crianças?
- Escola.
- A empregada?
- Com Julia, de companhia. Sabe como é, né. Grávida de novo, aquele barrigão...
- Seus vizinhos?
- Qual deles, Pedro?
- Qualquer um. Do lado direito, do lado esquerdo, de frente...
- Pedro, ô Pedro, quer me escutar um minuto?
- Fala meu amigo. Você me parece nervoso. Meio que fora de controle. Aconteceu algo sério Raulzinho?
- Pedro, me ouça. Do lado direito, mora o “Janjão 38”.
- Tá. E do esquerdo?
- O Moringa da “Torneirinha de Ouro”.
- Raulzinho, chame o mais parrudo. Prometa que vai entrar em contato com o mais parrudo. Ou aquele que melhor possa lhe prestar algum tipo de socorro urgente.
- Prestar socorro urgente? Pedro, você por acaso bebeu? Pirou na batatinha? Escuta uma coisa: “Janjão 38” a esta hora, deve andar pelo terceiro sono. Trabalha a noite, descansa durante o dia. O Moringa saiu com a esposa e os filhos praticamente junto com a Julia e a empregada.
- Tá, tá, tá. E o seu vizinho de frente? Esquecemos dele. Acione o sujeito.
- Vizinho de frente? Que vizinho de frente, seu maluco? Não tenho vizinho de frente.
- Como não? Tem do lado direito, do lado esquerdo e de frente não?
- Foi o que disse. Agora, por obséquio, Pedro, deixa de ser chato, me dá licença. Continuam batendo na porta...
- Pera ai, pera ai. Raulzinho, o que é que tem em frente a sua casa?
- A rua.
- Pombas, seu jumento. Do outro lado da rua.
- A calçada.
- Imbecil! Desculpe. Meu amigo. Desculpe, de verdade. Não é isso que eu quero saber. Perguntei se mora alguém.
- Em frente?
- É claro que é em frente. Será o Benedito?
- Não mora ninguém.
- A casa está vazia?
- Não.
- Então tem gente?
- Não.
- A cada minuto que passa, menos entendo! Como você complica...
- Pedro, aqui em frente não existe nenhuma casa. É um terreno baldio. Agora, por favor, para de ser inconveniente, desliga esse telefone e me deixa ir cuidar da porta? Seja lá quer for, parece furioso e fora de controle. Sabe que estou aqui e as pancadas estão cada vez mais fortes. Nunca vi ninguém bater assim numa porta com tamanha insistência.
- Que isso, meu amigo. Então ainda estão batendo nela?
- Batendo não seria bem o termo. Agora o cidadão partiu para a ignorância. E tome pancadas. Você não está escutando? Quem está lá sabe que estou aqui. Meu carro está na frente do portão. Acredito até que me viu entrando. Fui cedo a padaria. Olha me faça um obséquio. Desliga e daqui a trinta minutos a gente retorna com o papo. Dá pra ser ou está difícil?
- Você falou vinte. E outra coisa: como sabe que é um cidadão? Pode ser uma mulher. Não pode?
- Que seja cidadão, cidadã, mulher, cavalo, porco. Com relação ao tempo que eu mencionei vinte, quinze ou trinta minutos, que diferença faz? Agora desliga meu amigo. Estou ficando ligeiramente apreensivo.
- Ela está muito machucada?
- Por tudo quanto é mais sagrado! Ela quem, Pedro?
- A porta. Você não falou que estão batendo ai na sua porta? Batendo não, espancando? O que foi que ela fez? Fechou na cara de alguém? Prendeu o dedo de algum amiguinho de seus filhos e, agora, o pai, está no seu pé, querendo tirar satisfações? Ou arranjar um jeito de criar confusão? Talvez a empregada, por descuido...
-... Pedro, Pedro, Pedro, você está me gozando?
- Claro que não.
- Tirando um sarro?
- Que isso, mano. “Qualé” a sua?
- Então, por Deus, pelo amor de Deus, lhe imploro, desliga esse desgraçado e maldito telefone. A porta, Pedro, a porta. Vão acabar derrubando a coitada... De tanta cacetada...
- Vão? Você disse vão? Então é mais de um? Não se preocupe. Vou ligar para a polícia.
- O quê? Policia?
- Não se desespere. Mantenha os nervos relaxados. Vá até a cozinha e tome um café bem quente, sem açúcar. Café ajuda a manter os nervos controlados. Nada de pânico. Conte até vinte. Não, cinqüenta. Tira uma dúvida, Raulzinho? A polícia é 190 ou 130?
- Pedro, você não vai ligar coisíssima nenhuma.
- Calma. Espere. Estou consultando o guia telefônico. Num piscar de olhos aciono uma viatura. Fique calmo. Estou saindo daqui agora e indo ao seu encontro. Aguarde que logo estarei pintando na área. Questão de minutos, segundos, milésimos de centésimos...
- Pedro, Pedro, Pedro... Pedroooooooooo...
- Já sei, estão batendo na sua porta.
- Pedro, Peeeeeeeeeedro...
- Rauzinho, você é um homem ou um rato? Estou indo, seu filho de uma égua. Pare de dar chiliques. Ao menos seja homem com agá maiúsculo, como sua mãe. Credo!
- Peeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeedro, caralho. Vá tomar no seu cuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu!...
Barulho de telefone sendo desligado às pressas. Raulzinho se concentra na maldita porta da sala. Está suando em bicas. Pedro conseguiu lhe tirar do sério. Faz o sinal da cruz. Vira a chave. Abre. Dá de cara com Pedro, o telefone ainda no ouvido, o amigo, autor da sacanagem, se escangalhando de rir.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos é jornalista.
De Johannesburgo África do Sul
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