PEDAÇOS DA MINHA INFÂNCIA - PARTE VI
Junho de 1959.
O ano lectivo terminara mas a primogénita (eu) dos Papás Lacerda não voltou ao Quela porque ele, o herói da Exposição Feira de Malange, tinha sido transferido mais uma vez.
As Madres de S. José de Cluny de Luanda, Colégio onde estava em regime de internato, enfiaram-na no comboio rumo a Malange onde se iria juntar ao grupo com destino a Santo António do Zaire (ou Sazaire).
O Sr Governador, muito gentilmente, cedeu uma station lilás metalizada com uns 200 anos e muitos kms (foi a maneira inteligente que ele concebeu para se ver livre de tal mamarracho) para a família se deslocar. Ainda agora é um mistério para ela (eu) o porquê de não irem no "carro deles", um Carocha ENORME onde certamente iriam muito mais confortáveis... Nessa altura eram só 8 (não contando com o Papá Lacerda e com a Mamã Raquel novamente de esperanças!) e as bicuatas que não seguiram na camioneta que levou o CAROCHA e os outros haveres da malta, por serem de necessidade primeira.
Em direcção a Carmona, a 1ª etapa. A Station era grande e não era má de todo... Um dia de descanso nessa cidade lindíssima e fresca de frondosas florestas e belos cafezais.
Retemperadas as forças seguiram para o Ambriz onde voltaram a parar (agora por dois dias) porque a Mamã Raquel se queixava de dores nos rins (uma piegas...).
Dessa povoação a mana mais velha (eu) não guardou recordações só se lembrando de andar com uma das bebés mais novas às voltas, desde fraldas a biberons...
A Mamã Raquel estava imprópria para o que quer que fosse.
Nova saída para a estrada mas desta vez já todos com aspecto de comida que cão rejeitou...
O Papá Lacerda era o máximo: desde Malange que tinha a paciência de parar de 10 em 10 kms para que a prole pudesse apanhar ar puro pois confirmou-se a suspeita que eram TODOS alérgicos ao cheiro da gasolina (vá lá saber-se porquê?)...
Saíram pela manhã e antes mesmo do almoço um ruído estranho, como o de um arrastar correntes, ferros... O Papá Lacerda pára a Station, a troup aproveita logo para oferecer aos vermes da terra os restos do mata-bicho (café da manhã) que ainda não tinham sido digeridos, e constata que o pára-choques traseiro da dita se soltara em metade e arrastava pelo chão.
Não houve crise porque na caixa de ferramentas havia um pouco de arame com o qual o valente motorista amarrou o candidato a vadio.
Seguiram viagem e após uma sacudidela mais forte por causa de um pobre buraco na estrada, abre-se a porta das bagagens e começam a cair roupas, brinquedos e chapéus; (foi por milagre que não voou nenhuma das crianças porque nessa época ainda não se tinham inventado os cintos de segurança em Angola nem em parte alguma do mundo).
Nova paragem, nova saída em tropel da filharada para tratar dos restos das bolachas que a Mamã Raquel distribuíra por causa da tal alergia ao cheiro da gasolina e aproveitar também para "regar" umas quencas que nasciam à beira da estrada.
Um resto de arame resolveu o problema.
Kms volvidos, numa curva, abre-se de sopetão a porta traseira do lado direito.
Os milagres acontecem várias vezes por dia e ninguém caiu na estrada...
O fecho da porta partira-se.
O arame acabara.
A Mamã Raquel lembrou-se que tinha fraldas, ainda limpas, da criancinha mais nova.
O Papá Lacerda usou uma para amarrar a porta tentando fazer um nó de pescador que aprendera na tropa mas desistiu e fez um nó cego vulgaríssimo.
E o dia a passar e nunca mais se via o destino.
Pararam para almoçar, para lanchar, para...
A paisagem era muito diferente da que estavam habituados: altas palmeiras, sanzalas feitas de entrançados de palma e muito, muito limpas.
À tardinha, por birra ou cansaço, a Station soluçou, sacolejou, estremeceu e quedou-se muda que nem um rochedo.
Falta de gasolina (outra vez não!)? De óleo? De água? Havia de tudo.
Capot aberto e o Papá Lacerda tentando desvendar os mistérios que existem nesse espaço de todos os veículos: não viu nada que lhe desse qualquer pista (por isso se chamam mistérios - ninguém percebe porque por vezes os automóveis param).
Impressionou muito, principalmente aos rapazes (eles pensaram que o pai estava a concertar algo), batendo com uma chave de fendas aqui e ali, tentando talvez que, com essas pancadas a Station se decidisse a mover-se mais uns kms.
- "Já faltava pouco, caramba!" (era o desabafo mais forte que o destemido conhecia).
Mas ela não se comoveu...
- "Oh Lita! (diminutivo carinhoso que o Papá Lacerda chamava à Mamã Raquel) tira fulaninho do meu banco a vai tentando dar à ignição"!
Assim foi feito e nada...
- "Meninos! Todos a empurrar para ver se pega"!
Assim foi feito e nada...
- "Vou voltar atrás, àquela sanzala pela qual passámos há pouco, para que nos venham ajudar. Fiquem quietos e não aborreçam a Mamã que não está bem".
Regressou umas horas depois com alguns naturais da zona e que, muito simpaticamente se dispuseram a empurrar a Station até Sazaire.
Fizeram uma entrada andrajosa e digna de caricatura na vila! Valeu-lhes ser de noite e ninguém ter presenciado tamanha indignidade...
Era 10 de Junho (Dia de Camões, na época, agora Dia de Portugal e das Comunidades de Língua Portuguesa)...
Por que será que esta família foi fadada a fazer entradas triunfais para onde quer que fosse?"
Beijinhos,
Junho de 1959.
O ano lectivo terminara mas a primogénita (eu) dos Papás Lacerda não voltou ao Quela porque ele, o herói da Exposição Feira de Malange, tinha sido transferido mais uma vez.
As Madres de S. José de Cluny de Luanda, Colégio onde estava em regime de internato, enfiaram-na no comboio rumo a Malange onde se iria juntar ao grupo com destino a Santo António do Zaire (ou Sazaire).
O Sr Governador, muito gentilmente, cedeu uma station lilás metalizada com uns 200 anos e muitos kms (foi a maneira inteligente que ele concebeu para se ver livre de tal mamarracho) para a família se deslocar. Ainda agora é um mistério para ela (eu) o porquê de não irem no "carro deles", um Carocha ENORME onde certamente iriam muito mais confortáveis... Nessa altura eram só 8 (não contando com o Papá Lacerda e com a Mamã Raquel novamente de esperanças!) e as bicuatas que não seguiram na camioneta que levou o CAROCHA e os outros haveres da malta, por serem de necessidade primeira.
Em direcção a Carmona, a 1ª etapa. A Station era grande e não era má de todo... Um dia de descanso nessa cidade lindíssima e fresca de frondosas florestas e belos cafezais.
Retemperadas as forças seguiram para o Ambriz onde voltaram a parar (agora por dois dias) porque a Mamã Raquel se queixava de dores nos rins (uma piegas...).
Dessa povoação a mana mais velha (eu) não guardou recordações só se lembrando de andar com uma das bebés mais novas às voltas, desde fraldas a biberons...
A Mamã Raquel estava imprópria para o que quer que fosse.
Nova saída para a estrada mas desta vez já todos com aspecto de comida que cão rejeitou...
O Papá Lacerda era o máximo: desde Malange que tinha a paciência de parar de 10 em 10 kms para que a prole pudesse apanhar ar puro pois confirmou-se a suspeita que eram TODOS alérgicos ao cheiro da gasolina (vá lá saber-se porquê?)...
Saíram pela manhã e antes mesmo do almoço um ruído estranho, como o de um arrastar correntes, ferros... O Papá Lacerda pára a Station, a troup aproveita logo para oferecer aos vermes da terra os restos do mata-bicho (café da manhã) que ainda não tinham sido digeridos, e constata que o pára-choques traseiro da dita se soltara em metade e arrastava pelo chão.
Não houve crise porque na caixa de ferramentas havia um pouco de arame com o qual o valente motorista amarrou o candidato a vadio.
Seguiram viagem e após uma sacudidela mais forte por causa de um pobre buraco na estrada, abre-se a porta das bagagens e começam a cair roupas, brinquedos e chapéus; (foi por milagre que não voou nenhuma das crianças porque nessa época ainda não se tinham inventado os cintos de segurança em Angola nem em parte alguma do mundo).
Nova paragem, nova saída em tropel da filharada para tratar dos restos das bolachas que a Mamã Raquel distribuíra por causa da tal alergia ao cheiro da gasolina e aproveitar também para "regar" umas quencas que nasciam à beira da estrada.
Um resto de arame resolveu o problema.
Kms volvidos, numa curva, abre-se de sopetão a porta traseira do lado direito.
Os milagres acontecem várias vezes por dia e ninguém caiu na estrada...
O fecho da porta partira-se.
O arame acabara.
A Mamã Raquel lembrou-se que tinha fraldas, ainda limpas, da criancinha mais nova.
O Papá Lacerda usou uma para amarrar a porta tentando fazer um nó de pescador que aprendera na tropa mas desistiu e fez um nó cego vulgaríssimo.
E o dia a passar e nunca mais se via o destino.
Pararam para almoçar, para lanchar, para...
A paisagem era muito diferente da que estavam habituados: altas palmeiras, sanzalas feitas de entrançados de palma e muito, muito limpas.
À tardinha, por birra ou cansaço, a Station soluçou, sacolejou, estremeceu e quedou-se muda que nem um rochedo.
Falta de gasolina (outra vez não!)? De óleo? De água? Havia de tudo.
Capot aberto e o Papá Lacerda tentando desvendar os mistérios que existem nesse espaço de todos os veículos: não viu nada que lhe desse qualquer pista (por isso se chamam mistérios - ninguém percebe porque por vezes os automóveis param).
Impressionou muito, principalmente aos rapazes (eles pensaram que o pai estava a concertar algo), batendo com uma chave de fendas aqui e ali, tentando talvez que, com essas pancadas a Station se decidisse a mover-se mais uns kms.
- "Já faltava pouco, caramba!" (era o desabafo mais forte que o destemido conhecia).
Mas ela não se comoveu...
- "Oh Lita! (diminutivo carinhoso que o Papá Lacerda chamava à Mamã Raquel) tira fulaninho do meu banco a vai tentando dar à ignição"!
Assim foi feito e nada...
- "Meninos! Todos a empurrar para ver se pega"!
Assim foi feito e nada...
- "Vou voltar atrás, àquela sanzala pela qual passámos há pouco, para que nos venham ajudar. Fiquem quietos e não aborreçam a Mamã que não está bem".
Regressou umas horas depois com alguns naturais da zona e que, muito simpaticamente se dispuseram a empurrar a Station até Sazaire.
Fizeram uma entrada andrajosa e digna de caricatura na vila! Valeu-lhes ser de noite e ninguém ter presenciado tamanha indignidade...
Era 10 de Junho (Dia de Camões, na época, agora Dia de Portugal e das Comunidades de Língua Portuguesa)...
Por que será que esta família foi fadada a fazer entradas triunfais para onde quer que fosse?"
Beijinhos,