Cartão amarelo
Naquele dia, por pouco não fui expulso. E se tivessem me mandado pra casa, eu nada teria a reclamar: fora mesmo um transgressor.
Transgredira, embora sabendo, diante mão, que, flagrado, estaria irremediavelmente perdido.
Era a regra do jogo.
E, de repente, o sonho que eu ainda alimentava, frequentando os alegres claustros franciscanos do anos 1950, teria desmoronado bem antes do que eu esperava.
Venho prometendo, a quem me conhece, que jamais escreverei minhas memórias. E por vários motivos tais como a certeza de sua insignificante importância histórica.
O diabo é que, quem pega a mania de andar por aí rabiscando e publicando aquilo que pensa e sente - no meu caso, mas o que pensa do que o que sente -, se vê sempre tentado a pôr no papel o que ele foi, o que ele é, e o que poderá vir a ser.
Contar sua história, mesmo desconfiando que ela não despertará o menor interesse entre os seus eventuais leitores.
Um cronista, amigo de muitos anos, publicou um livro de memórias, e só quem o adquiriu foram seus pais.
Divorciado e sem filhos, o livro narrando sua trajetória por este mundo, segundo ele "recheada de boas lembranças", não foi além do berço que o viu nascer.
Contou-me isso sorrindo; mas deixando transparecer uma descomunal decepção.
Quando me vem a vontade de escrever minhas memórias - e até tenho muita coisa boa para contar - lembro-me do que, a esse respeito, deixou dito nossa Rachel de Queiroz.
Está em Tantos Anos, que ela escreveu com Maria Luiza de Queiroz, sua irmã.
Ao ser interpelada sobre quando as escreveria, Rachel foi incisiva: "Você sabe que eu não gosto de memórias. Nunca pretendi escrever memória nenhuma. É um gênero literário - e será literário mesmo? - onde o autor se coloca abertamente como personagem principal e, quer esteja falando bem de si, quer confessando maldades, está em verdade dando largas às pretensões do seu ego."
E conclui a autora de O quinze, de O memorial de Maria Moura e de centenas ou milhares de brilhantes crônicas: "O ponto mais discutível em memórias são as confissões, gênero que sempre abominei, pois há coisas na vida de cada um que não se contam. Eu, por exemplo, "nem às paredes do quarto confessaria", como diz o fado."
Mas em Tantos Anos e em Não me deixes a gente encontra muito da vitoriosa e fecunda vida da querida Rachel, que, sem bairrismo, sempre me enfeitiçou, com suas doces páginas; algumas comoventes.
No momento, estou a ler um livro de memórias de outro fabuloso escitor brasileiro. Me delicio com Eu, aos pedaços, do Carlos Heitor Cony.
Talvez seja, não, é esta a maneira mais atraente de alguma pessoa divulgar a sua história. Ou seja, aos pedaços. em pequenos trechos; em pequenas doses
Sem abusar da paciência dos leitores, que, assim, estarão livres daquela de ...eu nasci às tantas horas, do dia tal, e a manhã era de sol; etc., etc., etc.
E, assim, sigo eu, a exemplo do Cony, mas sem o seu brilhantismo,
divulgando-me aos pedaços.
Ainda seminarista, tive um grande amor!
Um grande amor?
No seminário? Sim, aconteceu.
Férias de fim de ano e, na pracinha da minha cidade, ela me apareceu, com o fulgor de uma estrela vespertina.
Lugar pequeno, todos sabiam que eu era de seminário; ela, inclusive.
O fato de não usar batina ajudou-me a tomá-la pelo braço, após a missa do galo.
Driblando, com incrível destreza, a vigilância do provecto vigário, e desviando sabiamente a atenção das beatas, que já me imaginavam nos altares casando e batizando, com ela me envolvi num romance discreto e bem comportado.
A paixão pela sertanejinha sem pintura, de saia de tafetá azul, cautelosamente abaixo dos joelhos, bateu forte...
Amor de seminarista, por razões óbvias, é sempre mais ardente.
Férias arriscadas!
No dia da despedida, um retratinho dela, tirado no lambe-lambe, acompanhou-me no meu retorno aos claustros.
Cheguei no seminário com ele no bolso do paletó e a saudade escondida no coração.
Não é que, em pleno recreio, o tal retrato foi parar no chão do claustro, deixando os colegas naquela de: "Oh! Oh! Oh!"
Fui denunciado. E, em seguida, submetido a um rigoroso interrogatório.
- Quem é ela? - o Reitor, um robusto frade alemão,semblante carregado, quis saber.
Só tive uma resposta: é minha prima.
O frade deu uma estrondosa gaitada, mostrando-se descrente.
- E cadê ele? perguntou por cima dos pince-nez.
Fui sumítico: o retrato? Eu rasguei...
E ele: "Porque você destruiu a foto de sua "prima", está perdoado. Pode ir."
Conclusão. Tomei um cartão amarelo, e me dei por satisfeito.
O tempo me tirou do seminário.
Décadas depois, o retrato de Gabriela desapareceu no emaranhado em que se transformou o gabinete do ex-seminarista...
Eu, aos pedaços!
Naquele dia, por pouco não fui expulso. E se tivessem me mandado pra casa, eu nada teria a reclamar: fora mesmo um transgressor.
Transgredira, embora sabendo, diante mão, que, flagrado, estaria irremediavelmente perdido.
Era a regra do jogo.
E, de repente, o sonho que eu ainda alimentava, frequentando os alegres claustros franciscanos do anos 1950, teria desmoronado bem antes do que eu esperava.
Venho prometendo, a quem me conhece, que jamais escreverei minhas memórias. E por vários motivos tais como a certeza de sua insignificante importância histórica.
O diabo é que, quem pega a mania de andar por aí rabiscando e publicando aquilo que pensa e sente - no meu caso, mas o que pensa do que o que sente -, se vê sempre tentado a pôr no papel o que ele foi, o que ele é, e o que poderá vir a ser.
Contar sua história, mesmo desconfiando que ela não despertará o menor interesse entre os seus eventuais leitores.
Um cronista, amigo de muitos anos, publicou um livro de memórias, e só quem o adquiriu foram seus pais.
Divorciado e sem filhos, o livro narrando sua trajetória por este mundo, segundo ele "recheada de boas lembranças", não foi além do berço que o viu nascer.
Contou-me isso sorrindo; mas deixando transparecer uma descomunal decepção.
Quando me vem a vontade de escrever minhas memórias - e até tenho muita coisa boa para contar - lembro-me do que, a esse respeito, deixou dito nossa Rachel de Queiroz.
Está em Tantos Anos, que ela escreveu com Maria Luiza de Queiroz, sua irmã.
Ao ser interpelada sobre quando as escreveria, Rachel foi incisiva: "Você sabe que eu não gosto de memórias. Nunca pretendi escrever memória nenhuma. É um gênero literário - e será literário mesmo? - onde o autor se coloca abertamente como personagem principal e, quer esteja falando bem de si, quer confessando maldades, está em verdade dando largas às pretensões do seu ego."
E conclui a autora de O quinze, de O memorial de Maria Moura e de centenas ou milhares de brilhantes crônicas: "O ponto mais discutível em memórias são as confissões, gênero que sempre abominei, pois há coisas na vida de cada um que não se contam. Eu, por exemplo, "nem às paredes do quarto confessaria", como diz o fado."
Mas em Tantos Anos e em Não me deixes a gente encontra muito da vitoriosa e fecunda vida da querida Rachel, que, sem bairrismo, sempre me enfeitiçou, com suas doces páginas; algumas comoventes.
No momento, estou a ler um livro de memórias de outro fabuloso escitor brasileiro. Me delicio com Eu, aos pedaços, do Carlos Heitor Cony.
Talvez seja, não, é esta a maneira mais atraente de alguma pessoa divulgar a sua história. Ou seja, aos pedaços. em pequenos trechos; em pequenas doses
Sem abusar da paciência dos leitores, que, assim, estarão livres daquela de ...eu nasci às tantas horas, do dia tal, e a manhã era de sol; etc., etc., etc.
E, assim, sigo eu, a exemplo do Cony, mas sem o seu brilhantismo,
divulgando-me aos pedaços.
Ainda seminarista, tive um grande amor!
Um grande amor?
No seminário? Sim, aconteceu.
Férias de fim de ano e, na pracinha da minha cidade, ela me apareceu, com o fulgor de uma estrela vespertina.
Lugar pequeno, todos sabiam que eu era de seminário; ela, inclusive.
O fato de não usar batina ajudou-me a tomá-la pelo braço, após a missa do galo.
Driblando, com incrível destreza, a vigilância do provecto vigário, e desviando sabiamente a atenção das beatas, que já me imaginavam nos altares casando e batizando, com ela me envolvi num romance discreto e bem comportado.
A paixão pela sertanejinha sem pintura, de saia de tafetá azul, cautelosamente abaixo dos joelhos, bateu forte...
Amor de seminarista, por razões óbvias, é sempre mais ardente.
Férias arriscadas!
No dia da despedida, um retratinho dela, tirado no lambe-lambe, acompanhou-me no meu retorno aos claustros.
Cheguei no seminário com ele no bolso do paletó e a saudade escondida no coração.
Não é que, em pleno recreio, o tal retrato foi parar no chão do claustro, deixando os colegas naquela de: "Oh! Oh! Oh!"
Fui denunciado. E, em seguida, submetido a um rigoroso interrogatório.
- Quem é ela? - o Reitor, um robusto frade alemão,semblante carregado, quis saber.
Só tive uma resposta: é minha prima.
O frade deu uma estrondosa gaitada, mostrando-se descrente.
- E cadê ele? perguntou por cima dos pince-nez.
Fui sumítico: o retrato? Eu rasguei...
E ele: "Porque você destruiu a foto de sua "prima", está perdoado. Pode ir."
Conclusão. Tomei um cartão amarelo, e me dei por satisfeito.
O tempo me tirou do seminário.
Décadas depois, o retrato de Gabriela desapareceu no emaranhado em que se transformou o gabinete do ex-seminarista...
Eu, aos pedaços!