O Dia de Hoje
O Dia de Hoje
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Escorre o dia de hoje. Escorre tão docemente (embora trague alguma solenidade) que eu gostaria que ele fosse a vida toda, finito no infinito.
Caminha, passa em brisa e horas, entre os livros e os documentários, entre pálpebras e cafés, cigarros e sons.
Abro cá a minha mão, e eis o dia nela: o dia de hoje. De manhã à tarde, desta à noite, da noite ao nada. Estou vivo, respiro e compreendo, mas não muito além do dia de hoje. Que satisfação me dá! Bendita vadiagem sem remorso!
Entre as paredes do coração, pelas paredes do apartamento, uma mulher evolui, como em ponta dos pés; é sua presença inaudível, mas fundamente sentida: a alma no etéreo, os peitos, os pêlos, a boca, o ventre; lá ela, ausente daqui porque presente em tudo, porque é continente de tudo o que comporto no dia de hoje: a brisa, os livros, o café, a filosofia da vadiagem; a mulher.
Tolo escritor, pobre cronista, com o dia de hoje tão ao seu alcance, mas tão incontido por suas palavras curtas, inexcedíveis de sua pouca visão. Cantar, contar, escrever, beber, tudo aquém do sentimento, da dimensão estrelar vista pela janela do dia de hoje, dia de um homem vivo e que sente o amor; o dia de hoje, de que sou objeto, e no entanto escrevo sobre ele, que deveria compor em torno de mim, que sou simples utensílio de sua eternidade galopante.
Se fosse assim, diria (o dia de hoje, e certamente com mais verve):
“Vê que pequenino homem triste instalou-se num cantinho do que sou, do que posso... Vê como ama, como escreve: tão a descontento, mas o faz com uma boa-vontade tal que me dá dó! Ah, criança, cena de mim, o dia de hoje; passe! Não posso lhe chamar de filho; você não pode me chamar de pai. Passe, simplesmente, e viva sua vida, seu encanto, sua dor e seu sorriso. Amanhã será outro, mas o dia, o dia será ainda o de hoje, o dia de hoje.”