Foi um dia diferente. Desses dias em que os fatos parecem prontos para aflorar naquele momento determinado. Como se a vida esperasse por ela para existir, de fato e de direito, naquele local e hora inevitáveis. Sequer pode impedir o desejo imprevisto de sair. Coisa que incomodou, mas não foi levada a sério.
 
Trabalhava tanto! O corpo exigia sol, outros ares, distração. Até riu pois, aos sessenta e dois, já conhecia bem seus velhos ossos e músculos. Novidade, aquele querer repentino. Mas, ora! Que mal faria acolher o impulso impertinente?

Resolveu dar uma volta na feira. Nossa, há quanto tempo não andava assim, à toa. Cabeça vazia e olhos atentos. Tanta coisa que nunca tinha visto! Tanta coisa nova que nem podia imaginar. Coisinhas bobas, simples, nunca reparadas. Brinquedos que pareciam ter vida, cortador de ovo de arame, cortador de couve, fininha. O homem é danado mesmo! Inventa tudo!

E foi que ela parou na barraca onde duas jovens escolhiam maquiagem. Esfoliante? Blush? Palavras estrangeiras ou não, nunca tinha ouvido falar daquilo. No seu tempo era o batonzinho mesmo e o pó de arroz. Da Myrurgia. Produtos bons! Bons, também, eram os perfumes. Especialmente, o Promessa. Quanto tempo! Nem sabia mais se existia. Curiosa, olhava as meninas experimentando sombras, cremes, esmaltes dourados... Nossa! Onde estava nesse mundo? Em que outro planeta?

Ficou ali que nem criança de frente para o brinquedo. As meninas saíram, chegaram outras e ela ali. Vontade de experimentar, mas cadê coragem? Só faltava um pouquinho de coragem. O dinheiro estava na bolsa. Comprava um, depois olhava outro e se desse, comprava. Tudo aos pouquinhos, pois não tinha a menor ideia de quanto custaria cada um daqueles vidrinhos coloridos, nem as espuminhas, pincelzinho, estojo...

Nem lembrou-se do almoço. Em casa, tirou tudo da sacolinha e arrumou sobre a mesa. Foi pegar o espelho e depois de apoiá-lo na lata de biscoito, tomou demorado banho. Abriu a embalagem do sabonete esfoliante, que a mocinha da barraca ensinou a usar, e sentiu-se nas nuvens! Sentou-se seminua na frente do espelho. Fez uma fila de potes, vidrinhos e estojos: primeiro o creme de limpeza, depois...

Maquiou-se, do jeito que sabia. Foi ao banheiro, penteou os cabelos e ligou a tevê. Abriu a geladeira, fez um sanduíche de mortadela, pegou um copo de leite e sentou-se para ver a novela. Reparou na pintura dos lábios das atrizes, nos olhos pintados e cílios realçados com rímel. Que coisa! Só aos sessenta e dois lembrou-se de que também era mulher.
Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 28/06/2010
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